Certo dia apareceu um
velhinho revoltado na delegacia. Raiva e inconformismo transbordavam pelo seu
corpo. Tremia dos pés à cabeça enquanto lágrimas desciam dos seus olhos.
_ Mais uma vez ele atacou, e
vocês não fazem nada!
_ Quem? _ perguntou Antônio
indignado_ quem está fazendo vítimas sem que eu saiba?
_ O Rastejador Soluçante!
Todos no recinto começaram a
rir, menos Macapá e o idoso, que ficou ainda mais nervoso.
_ Qual é a graça? _
perguntou o policial que não sabia o que estava acontecendo.
O delegado explicou:
_ Você chegou aqui há pouco
tempo. Trata-se de uma criatura do folclore local. Alguns dizem que já viram,
mas é recomendado não levar esses relatos a sério. Trata-se de uma versão do
Corpo Seco que supostamente mora num açude perto da Represa. Várias crianças
nadam lá e morrem afogadas, mas seus corpos nunca voltam a aparecer porque o
lodo prende os pés deles no leito.
_ Você tem resposta para
tudo, né? _ retrucou o velhinho nervoso. _ Pois eu te digo que eu já vi essa
criatura. Está me chamando de mentiroso?
O chefe cético perguntou:
_ Deixa-me adivinhar, você o
viu à noite.
_ Sim e o que isso tem a
ver?
_ E coincidentemente o
senhor estava sem óculos;
_ Como o senhor sabe que eu
uso óculos?
_ Um palpite que acabou de
ser confirmado por você. Olha, com todo respeito, a gente tem muita coisa séria
para investigar e não pode ficar deslocando força policial para ficar
verificando crendices.
_ Isso é um absurdo! _
esbravejou o velhinho! _ Nunca vi tamanha falta de respeito!
Foi então que um dos
desafetos de Antônio gritou:
_Porque o Macapá não vai?
Afinal ele é o mais dedicado.
O delegado não entendeu a
princípio, mas depois percebeu que era a oportunidade de negociar uma certa
propina sem o medo de ser interrompido e ao mesmo tempo se livrar do idoso sem
o risco de ouvir uma reclamação na imprensa ou do prefeito.
_ Antônio, por favor cuide
desse caso para mim. Provavelmente não deve ser nada, mas pelo menos este
senhor fica com a consciência aliviada, não é?
O ingênuo policial aceitou
com um enorme sorriso e partiu em direção ao local, que na verdade era um
mangue que rodeava o açude perto da Represa. Realmente as chances de uma
criança morrer afogada naquelas proximidades era muito grande.
_ Me conte de quando você
avistou a criatura, disse Antônio.
_ Bom, eu moro num sítio
perto daqui e tava guardando as galinha no fim do dia quando ouvi um barulho
estranho, como se alguém estivesse engasgando com água, só que muito alto. Fui
correndo para ver o que era e enxerguei um bicho grande, encurvado em pé, com
os óio esbugaiado procurando alguma coisa em volta, talvez pra comer. Ele tinha
a pele toda escamosa e esverdeada igual qui nem uma cobra.
_ O senhor viu ele de perto?
_ E eu lá sô doido de chegar
perto dessa coisa? O que você acha que é, espertão?
_Sinceramente eu não sei,
mas vou precisar de ficar de tocaia para ver se encontro alguma coisa.
_ Eu fico junto com você.
Quero que você confirme na minha frente.
O idoso se chamava Idalino
Marcondes e ele tinha uma humilde propriedade nas redondezas, onde criava
galinhas, patos e tinha uma horta, o bastante para a própria subsistência. O
policial começou a sentir que estava perdendo o seu tempo ali, mas não tinha
coragem de desacreditar o idoso. Esperaram o dia passar conversando enquanto
tomavam café com bolo de fubá. Quando começou a escurecer o velhinho foi
guardar os bichos enquanto o outro vestiu suas botas de borracha e pegou sua
lanterna para começar a ronda.
Caminhava devagar pelo
mangue com um misto de curiosidade e medo de realmente encontrar alguma coisa.
Provavelmente o idoso ouviu um sapo e se confundiu, era cientificamente
improvável encontrar qualquer coisa que desafiasse o imaginário. Andou, andou e
não viu nada. Estava quase indo embora quando ouviu um estranho grito gutural.
Uma mão encostou no seu ombro e ele acabou dando uma cotovelada no rosto de
Idalino, que finalmente o tinha alcançado.
O velho caiu sentado no chão
com o nariz sangrando. Quando percebeu o que tinha feito, Antônio se virou para
ele e foi cuidar de seu nariz, enquanto pedia desculpas. Quando fez isso
Idalino gritou:
_ Olha lá, atrás de você!
O policial se virou e
iluminou uma criatura humanóide com o corpo escamoso, se arrastando pelas duas
pernas enquanto soltava um estranho guincho gutural, provavelmente tentando
achar algum bicho para comer. Tinha os olhos esbugalhados como um sapo e os
dedos palmados nas mãos. Sua cabeça tinha um formato estranho, meio achatada
com grandes guelras no pescoço. Andava curvado, como se carregasse uma pedra
gigante e invisível nas costas. Não parecia agressivo, então o mais certo era
apenas bater uma foto e ir embora, mas Idalino queria vingança, mesmo sem saber
se aquilo tinha realmente devorado as crianças desaparecidas.
_ Vem encarar, filho da
puta! _ Gritou ele encolerizado! _ Hoje você vai morrer, disgrama!
Antônio sentiu todo o seu
corpo tremer. Não estava esperando um confronto tão repentino. Não era
impulsivo. Preferia estudar o adversário e depois elaborar um plano de ataque.
Depois de avistado, a criatura soltou um guincho bastante alto com a boca aberta,
onde pela primeira vez foi possível avistar duas enormes fileiras de dentes,
que não eram grandes, mas pareciam bastante afiados como milhares de agulhas.
O bicho veio correndo na
direção deles e a única reação de Antônio foi descarregar o revólver nele, que
ainda conseguiu desferir uma dentada no braço dele antes de morrer. O que quer
que fosse aquilo afundou no mangue, antes que tivesse a oportunidade de ser
estudado. Estava escuro e o policial ainda precisava passar no hospital, antes
de terminar o dia.
_ Ninguém vai acreditar na
gente, não é? _ Perguntou o velho.
_ Não, e nem sei se essa
mordida é contagiosa. Será que eu tenho chances de virar um bicho desses?
_ Se isso acontecer, pode
ficar tranquilo que eu te mato.
_Ah bom saber que posso contar
com a sua ajuda! Valeu mesmo! _ respondeu ironicamente Antônio.
_ É o mínimo que posso fazer
por um amigo.
O policial preferiu não
estender a conversa e dirigiu até o hospital. Enquanto isso pensava se as
crianças tinham sido mortas ou não por aquela criatura. Era provável, mas não
podia ser confirmado, então ele preferiu deixar arquivado como boato mesmo.