Conta um conto

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Antônio Macapá e o Rastejador Soluçante

Antônio Silveira Macapá cresceu na polícia seguindo o exemplo de seu pai, que sempre considerou um herói acima de quaisquer outros que tinha conhecido. Seu senso de justiça e ética inquestionável fez com que ele se tornasse uma figura respeitada e ao mesmo tempo detestável entre alguns colegas de trabalho que o invejavam ou eram corruptos e não queriam ser delatados por ele. Por isso seus desafetos ansiavam por se livrar dele o mais rápido possível. 

Certo dia apareceu um velhinho revoltado na delegacia. Raiva e inconformismo transbordavam pelo seu corpo. Tremia dos pés à cabeça enquanto lágrimas desciam dos seus olhos. 

_ Mais uma vez ele atacou, e vocês não fazem nada! 

_ Quem? _ perguntou Antônio indignado_ quem está fazendo vítimas sem que eu saiba? 

_ O Rastejador Soluçante! 

Todos no recinto começaram a rir, menos Macapá e o idoso, que ficou ainda mais nervoso. 

_ Qual é a graça? _ perguntou o policial que não sabia o que estava acontecendo. 

O delegado explicou: 

_ Você chegou aqui há pouco tempo. Trata-se de uma criatura do folclore local. Alguns dizem que já viram, mas é recomendado não levar esses relatos a sério. Trata-se de uma versão do Corpo Seco que supostamente mora num açude perto da Represa. Várias crianças nadam lá e morrem afogadas, mas seus corpos nunca voltam a aparecer porque o lodo prende os pés deles no leito. 

_ Você tem resposta para tudo, né? _ retrucou o velhinho nervoso. _ Pois eu te digo que eu já vi essa criatura. Está me chamando de mentiroso? 

O chefe cético perguntou: 

_ Deixa-me adivinhar, você o viu à noite. 

_ Sim e o que isso tem a ver? 

_ E coincidentemente o senhor estava sem óculos; 

_ Como o senhor sabe que eu uso óculos? 

_ Um palpite que acabou de ser confirmado por você. Olha, com todo respeito, a gente tem muita coisa séria para investigar e não pode ficar deslocando força policial para ficar verificando crendices. 

_ Isso é um absurdo! _ esbravejou o velhinho! _ Nunca vi tamanha falta de respeito! 

Foi então que um dos desafetos de Antônio gritou: 

_Porque o Macapá não vai? Afinal ele é o mais dedicado. 

O delegado não entendeu a princípio, mas depois percebeu que era a oportunidade de negociar uma certa propina sem o medo de ser interrompido e ao mesmo tempo se livrar do idoso sem o risco de ouvir uma reclamação na imprensa ou do prefeito. 

_ Antônio, por favor cuide desse caso para mim. Provavelmente não deve ser nada, mas pelo menos este senhor fica com a consciência aliviada, não é? 

O ingênuo policial aceitou com um enorme sorriso e partiu em direção ao local, que na verdade era um mangue que rodeava o açude perto da Represa. Realmente as chances de uma criança morrer afogada naquelas proximidades era muito grande. 

_ Me conte de quando você avistou a criatura, disse Antônio. 

_ Bom, eu moro num sítio perto daqui e tava guardando as galinha no fim do dia quando ouvi um barulho estranho, como se alguém estivesse engasgando com água, só que muito alto. Fui correndo para ver o que era e enxerguei um bicho grande, encurvado em pé, com os óio esbugaiado procurando alguma coisa em volta, talvez pra comer. Ele tinha a pele toda escamosa e esverdeada igual qui nem uma cobra. 

_ O senhor viu ele de perto? 

_ E eu lá sô doido de chegar perto dessa coisa? O que você acha que é, espertão? 

_Sinceramente eu não sei, mas vou precisar de ficar de tocaia para ver se encontro alguma coisa. 

_ Eu fico junto com você. Quero que você confirme na minha frente. 

O idoso se chamava Idalino Marcondes e ele tinha uma humilde propriedade nas redondezas, onde criava galinhas, patos e tinha uma horta, o bastante para a própria subsistência. O policial começou a sentir que estava perdendo o seu tempo ali, mas não tinha coragem de desacreditar o idoso. Esperaram o dia passar conversando enquanto tomavam café com bolo de fubá. Quando começou a escurecer o velhinho foi guardar os bichos enquanto o outro vestiu suas botas de borracha e pegou sua lanterna para começar a ronda. 



Caminhava devagar pelo mangue com um misto de curiosidade e medo de realmente encontrar alguma coisa. Provavelmente o idoso ouviu um sapo e se confundiu, era cientificamente improvável encontrar qualquer coisa que desafiasse o imaginário. Andou, andou e não viu nada. Estava quase indo embora quando ouviu um estranho grito gutural. Uma mão encostou no seu ombro e ele acabou dando uma cotovelada no rosto de Idalino, que finalmente o tinha alcançado. 

O velho caiu sentado no chão com o nariz sangrando. Quando percebeu o que tinha feito, Antônio se virou para ele e foi cuidar de seu nariz, enquanto pedia desculpas. Quando fez isso Idalino gritou: 

_ Olha lá, atrás de você! 

O policial se virou e iluminou uma criatura humanóide com o corpo escamoso, se arrastando pelas duas pernas enquanto soltava um estranho guincho gutural, provavelmente tentando achar algum bicho para comer. Tinha os olhos esbugalhados como um sapo e os dedos palmados nas mãos. Sua cabeça tinha um formato estranho, meio achatada com grandes guelras no pescoço. Andava curvado, como se carregasse uma pedra gigante e invisível nas costas. Não parecia agressivo, então o mais certo era apenas bater uma foto e ir embora, mas Idalino queria vingança, mesmo sem saber se aquilo tinha realmente devorado as crianças desaparecidas. 

_ Vem encarar, filho da puta! _ Gritou ele encolerizado! _ Hoje você vai morrer, disgrama! 

Antônio sentiu todo o seu corpo tremer. Não estava esperando um confronto tão repentino. Não era impulsivo. Preferia estudar o adversário e depois elaborar um plano de ataque. Depois de avistado, a criatura soltou um guincho bastante alto com a boca aberta, onde pela primeira vez foi possível avistar duas enormes fileiras de dentes, que não eram grandes, mas pareciam bastante afiados como milhares de agulhas. 

O bicho veio correndo na direção deles e a única reação de Antônio foi descarregar o revólver nele, que ainda conseguiu desferir uma dentada no braço dele antes de morrer. O que quer que fosse aquilo afundou no mangue, antes que tivesse a oportunidade de ser estudado. Estava escuro e o policial ainda precisava passar no hospital, antes de terminar o dia. 

_ Ninguém vai acreditar na gente, não é? _ Perguntou o velho. 

_ Não, e nem sei se essa mordida é contagiosa. Será que eu tenho chances de virar um bicho desses? 

_ Se isso acontecer, pode ficar tranquilo que eu te mato. 

_Ah bom saber que posso contar com a sua ajuda! Valeu mesmo! _ respondeu ironicamente Antônio. 

_ É o mínimo que posso fazer por um amigo. 

O policial preferiu não estender a conversa e dirigiu até o hospital. Enquanto isso pensava se as crianças tinham sido mortas ou não por aquela criatura. Era provável, mas não podia ser confirmado, então ele preferiu deixar arquivado como boato mesmo. 

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