Conta um conto

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Apartamento 204

 


Nina se mudou no início da primavera, com suas poucas malas. Seguindo um estilo mais minimalista, precisava de muito pouco para se sentir bem. Sua característica mais marcante com certeza é o seu sorriso, que já havia sobrevivido a muitos ataques de raiva. Aconteça o que acontecesse, estava sempre em paz consigo mesma. Quando percebia que ia ficar irritada, respirava fundo e refletia a respeito do sentido de sua raiva, só para depois perceber que não valia a pena. Adepta da filosofia oriental e vegetariana, estava em paz consigo mesma. 

Conheceu o professor Raul saindo de uma sessão de cinema. Sentiu que ele era uma pessoa diferente pois tinha se emocionado com o filme. Tentou disfarçar as lágrimas, mas ela tinha visto. Ao perceber que tinha sido flagrado ele negou, com raiva de sua própria vulnerabilidade, mas ela não tinha se importado.  Na verdade, ela tinha notado um oásis de sensibilidade em meio a um deserto de boçalidade e machismo.  Encantado pela beleza da moça que tinha reparado nele, convidou-a para um café num bistrô perto dali. 

Enquanto saboreavam um cappuccino ela acabou percebendo outras qualidades no rapaz, que era bastante divertido apesar de sua aparência séria. 

_ O que você faz? Perguntou ele sem rodeios. 

_Faço muitas coisas, você precisa ser mais específico. 

_ Digo, sua ocupação, seu trabalho. 

_ Eu acabei de me mudar e sou formada em Educação Física. Gostaria de dar aulas de Yoga. E você? 

_Sou professor de Geografia. 

_Ah, legal. 

_ Não precisa fingir interesse. Nem eu sei direito porque escolhi me formar nessa faculdade. 

_Ué, mas você não gosta do que ensina? 

_ Sei lá, acho que sim. Nunca fui muito de estudar quando era mais novo e me matriculei na faculdade que teoricamente seria mais fácil de entrar, com pouca concorrência. Depois que estava lá dentro fui me acomodando e pegando gosto. 

_ Então você gosta da disciplina. 

_Eu não odeio. Paga as contas. 

_Nossa, que triste. Você tem algum hobby? 

_ Eu busco prazer nas pequenas coisas. Cortar cubos de queijo minas no café quente, sentir o perfume noturno das damas da noite que crescem embaixo da minha janela, sentir a maciez do edredom revestindo o meu corpo numa noite fria, essas coisas. 

_ Mas se você não trabalha no que gosta, perde muito tempo útil de vida. 

_ Eu amo pescar, mas não me rende dinheiro. Em certas coisas é preciso ser pragmático. No seu caso, por exemplo eu te recomendo procurar um estúdio para ensinar. Se você for dar aulas particulares não irá conseguir se sustentar. 

Ela ficou calada, pensando; ele ficou na defensiva porque achou que a tinha magoado. 

_Desculpe, eu não tive a intenção... 

_ Não, tudo bem, o que você disse infelizmente faz sentido. Talvez eu seja um pouco sonhadora demais, mas não me arrependo de pensar assim. 

_ Nem deveria, são pessoas como você que fazem a experiência de viver ser tão incrível. 

Ela sorriu, enrubescida por aquele elogio repentino. Trocaram telefones e mantiveram contato desde então. Aos poucos, um foi modificando a consciência do outro. Ela começou a buscar uma ocupação que pagasse as contas enquanto ele foi em busca de algo que realmente dialogasse com as suas verdadeiras paixões. Sentiam um carinho e conforto mútuo, algo nunca antes vivenciado por ambos.  

Um relacionamento amoroso acabou surgindo, mas a convivência cada vez mais intensa com o professor acabou revelando um lado dele que ela desconhecia ou tinha inadvertidamente ignorado até então: o professor, que até então era bastante gentil e divertido foi gradativamente revelando sua personalidade machista, ciumenta e abusiva. 

 

A dificuldade de encontrar um emprego bem remunerado fez com que ela acabasse aceitando a ajuda financeira do mesmo, o que fez com que ela lentamente fosse sugada para um pesadelo da qual não via saída. Sua vida era constantemente vigiada e controlada, celular e internet sempre conferidos e cozinhando para um homem explosivo e truculento. Atingiu então um sério nível de depressão e sua vida entrou no piloto automático. Nada mais importava. Chegou a pensar em se matar, mas não tinha coragem. Quando estava a ponto de perder as esperanças, ele sumiu de repente, sem dar explicação alguma.  

Nina sentiu uma mistura de alívio com desnorteamento. O que estava acontecendo? Será que ele simplesmente se cansou e foi embora? E as suas dívidas? As contas chegando e ela sem dinheiro para pagar. Ao mesmo tempo sentia uma imensa liberdade, uma vontade de rir por horas a fio, coisa que há muito tempo não sentia. Entregou o seu currículo em algumas academias e escolas de natação, mas não obteve resposta. 

Um dia estava voltando para casa tão chateada e distraída que quase seguiu andando em frente, ao invés de entrar no próprio prédio. Foi surpreendida por uma voz: 

_ Me desculpe, achei que você iria subir comigo e fiquei segurando o portão. Era o solícito Edgar, do apartamento 104. 

Foi então que ela se deu conta de seu deslize, e envergonhada deu meia volta: 

_Eu que peço desculpas. Estava com a cabeça nas nuvens. 

_Eu sei como é, não se preocupe. 

_ Tanta coisa na cabeça que está difícil aterrissar. 

_Se quiser conversar a respeito, eu sou um bom ouvinte. 

_ Você não precisa dos meus problemas. 

_ Olha, todo mundo passa por problemas. Eu mesmo estou tentando entender o sumiço de uma mulher que estava começando o relacionamento comigo... 

_Não é possível! 

_ Possível é, porque eu sei que não sou lá grande coisa, mas sumir assim, sem aviso? Bem indelicado da parte dela, não acha? 

_ Eu estou passando pela mesma coisa! 

_ Não brinca! Uma mulher te abandonou também? Será que é a mesma? 

_ Não, meu namorado sumiu. 

_ Como assim sumiu? Você foi no trabalho dele? 

_ Eu liguei para a escola. Sumiu. Como se tivesse sido abduzido por alienígenas. 

_ Que loucura! 

_Pois é! 

_ E que coincidência! Quem poderia imaginar isso! 

_ A vida é essa caixinha de loucuras previamente arranjadas. A gente muitas vezes acha que está num labirinto, mas na verdade o caminho já estava traçado há muito tempo. Eu sei que existe livre arbítrio e tudo mais, mas muitas vezes a gente se encontra nesse excesso de coincidências que nos leva a pensar: será que o acaso realmente existe? 

_ Realmente faz a gente pensar... 

Assim começou uma amizade entre vizinhos que naturalmente progrediu para um relacionamento saudável. Ela acabou trabalhando de garçonete no restaurante onde Edgar trabalha como chef.  

Até hoje, quando ocasionalmente bate a insegurança ele bate com a vassoura no teto enquanto ela responde fazendo barulho no assoalho, e vice versa, só para acalmar os nervos um do outro. 


 

 

 

 



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