O apartamento 202 do Edifício Solaris era a sede do encontro mensal da Confraria dos Pelicanos, um grupo de amigos desde os tempos de faculdade. O nome surgiu em função do perfil da ave em questão, sempre solitária e malvista por onde passa. Lá eles se sentiam à vontade para desabafar sobre os seus problemas e beber bastante, além de jogar baralho e jogos de tabuleiro. O grupo era formado pelo dono do apê e bancário Alexandre que nunca tinha sucesso com mulheres, o veterinário Cassiano preso num casamento sem amor, o mulherengo DJ Michel e Astolfo, um professor de escola estadual e pai de gêmeos, constantemente sonolento e cansado por motivos óbvios.
_Essas reuniões são o ponto alto do mês para mim._ disse o anfitrião enquanto sacudia um dado em sua mão._ deixam minha vida mais suportável.
_ Odeio admitir isso, mas é o único lugar onde me sinto realmente em casa._ concordou Cassiano.
_ Eu adoro vocês, mas sempre achei que seria melhor se tivesse mulheres. Essa festa de cuecas é deprimente, desculpa falar._ afirmou Michel
Os três olharam para o professor que não se pronunciou porque estava apagado no sofá. Eles concluíram que aquele deveria ser o único momento em que ele se sentia verdadeiramente relaxado para descansar e por isso não o incomodavam.
_ Esse não é o propósito dessas reuniões e mesmo se fosse, garanto a vocês que ainda arrumaria um jeito de terminar a noite na seca como sempre.
_ Você precisa sair mais comigo, vou te levar nuns lugares bacanas.
_ Eu não tenho o que reclamar em relação a mulheres. Eu amo a minha esposa, mas ela não me deixa fazer as coisas que eu realmente gosto. Fui cedendo tanto sem perceber que hoje sinto que me tornei uma sombra de quem eu realmente era.
_ Porque você não se divorcia dela?
_ Sei lá, acho que é porque não vou achar ninguém melhor.
_ Quem disse?
_ Sei lá, eu demorei tanto a achar alguém que me suporte. Eu sei que sou uma pessoa difícil. Eu a amo por suportar a minha convivência.
_ Cara, isso é muito triste.
Os três ficaram em silêncio por bastante tempo. O veterinário quebrou o silêncio:
_ Olha, ela não é uma pessoa ruim.
_ Ninguém disse isso.
_ Mas eu sinto que dei essa impressão.
_ Gente, vamos mudar de assunto? _ disse Alexandre claramente incomodado com toda aquela situação. _ Ele desabafou e agora vamos seguir em frente.
_ Esse é exatamente o problema. _ disse Michel. _ todo mundo vem aqui, chora as pitangas e segue em frente. A gente precisa fazer alguma coisa a respeito. Não podemos ficar só nessa terapia paliativa para superar a existência. A gente precisa viver! Viver de verdade! Fazer isso uma vez só não vai matar ninguém. A gente precisa dessa catarse. Vocês são praticamente a minha família. Pegar mulher é bom, mas é bastante solitário também, podem acreditar. Acho que por isso me interessei tanto nessa declaração do Cassiano. Desculpe se fui invasivo.
_ Não, eu gostei de comentar sobre isso. Não se preocupe. Fui eu que comecei, afinal de contas.
_Acho que a gente precisa arrumar uma maneira de estender esse nosso contato. Estamos precisando de uma espécie de intensivão, onde todos tenham a oportunidade de se ajudar para sair desse marasmo emocional em que estamos. _ refletiu Alexandre.
_ O que você está propondo? Uma viagem? Para onde a gente iria? _ perguntou Michel.
_ Uma viagem seria legal. A gente podia acampar, pescar… _ disse Cassiano.
_ Eu gosto de pescar, mas a gente precisa incrementar a nossa sociabilidade. Não a minha, mas a de vocês. _ rebateu o DJ
_ Vamos pesquisar um festival em uma cidade aqui perto. Alguns dias com muita festa e bebidas. A gente está precisando de algo assim, não é?
_ Agora você está pegando o espírito da coisa! Vamos sair dessa zona de conforto, pessoal!
Resolveram então ir para a Festa da Cachaça em Abreus. Cada um fez a sua própria programação, conseguindo folgas no trabalho e fazendo reservas na pousada da cidade. Partiram no Gol vermelho de Alexandre que montou até uma playlist para animar o pessoal. A viagem durou algumas horas e eles tiveram bastante tempo para conversar no carro. Michel aproveitou para dar umas dicas de pegação para o amigo bancário:
_ Cara, posso te falar uma coisa? Por favor não se ofenda.
_ Pode falar, você é irmão.
_ É sobre a sua abordagem com a mulherada.
_ O que tem ela?
_ Você tem que ser mais desapegado. Elas sentem a sua carência de longe, não curtem.
_ Eu sou romântico, qual o problema?
_ Romântico não, é desesperado mesmo.
_ Isso realmente é um choque para mim.
_ Me desculpe por ser tão direto. Já devia ter conversado isso contigo antes.
_ Tranquilo, sem problemas.
Alexandre aproveitou para mudar de assunto e perguntou a Cassiano:
_ E você, quais os planos para a nossa viagem?
_ Não sei, vou aproveitar esse tempo longe da patroa para curtir, pensar na vida, sei lá. Estou indo mais pela farra mesmo, sem expectativas.
Astolfo dormia um sono pesado com a cabeça apoiada na janela. Era o único que dispensava quaisquer explicações sobre eventuais motivações para aquela viagem.
Depois de um tempo acabaram chegando ao seu destino. Se instalaram na Pousada e saíram para ver as atrações da cidade. O professor estava desperto, como se tivesse recobrado as suas energias, ansioso para retomar o tempo perdido. A típica cidade do interior mineiro ganhou o coração dos turistas sem fazer esforço. Os estandes estavam começando a ser montados, assim como o palco onde aconteceria o show da banda Pedra Letícia à noite. O olhar curioso dos pelicanos chamou a atenção de uma moça que obviamente percebeu que eram de fora e os convidou para tomar um café em sua padaria. Mia era o seu nome. Alexandre ficou encantado pela moça e já estava se adiantando quando foi interrompido pelo DJ que sussurrou no seu ouvido:
_ Pega leve. Lembra do que eu te falei. Sem ansiedade.
O bancário respirou fundo e manteve a conversa despreocupado. Astolfo estava incrivelmente animado e já foi perguntando sobre as melhores cachaças para beber na região. A moça respondeu que havia uma marca famosa chamada Brisa, nas opções Caipibrisa e Maracujá. O professor quis logo começar a beber, enquanto os outros três resolveram deixar para mais tarde. Ficaram sabendo de uma cachoeira muito bonita ali perto e foram tomar um banho para relaxar da viagem. Cassiano respirou fundo e sentiu um estranho alívio percorrendo por todo o seu corpo que fez com que ele gargalhasse alto sem motivo aparente.
_ Deveríamos ter feito isso há mais tempo. _ disse o veterinário com um sorriso de satisfação estampado em seu rosto.
_ É curioso como ficamos presos aos nossos hábitos a ponto de não percebermos a gaiola invisível que cresce ao redor da gente.
_ Nem bebeu e já está filosofando, Alex? _ perguntou Michel em tom de brincadeira.
_ Está tudo indo tão bem que estou prevendo que em algum momento essa viagem vai dar merda. _profetizou Cassiano.
_ Porque você diz isso?
_ Está tudo calmo demais. Parece filme de terror barato.
_ Você é neurótico. Acho que você sente falta do stress.
_ Eu estou estranhamente relaxado, para dizer a verdade. Acho que nunca me senti assim na minha vida.
_ O céu está azul, a pousada é ótima, só aproveita. Não pense no que virá. Só aproveite o momento.
O veterinário respirou fundo, olhou a água cristalina e só absorveu o instante. Depois de retornarem e almoçarem é que deram conta do sumiço do professor. Todos pensaram no que foi profetizado anteriormente, mas ninguém disse nada. Provavelmente estava bêbado e caído em algum lugar.
Quando escureceu eles começaram a beber. A multidão se formou na praça e a festa começou. Cassiano foi atrás do professor e o DJ se perdeu despreocupado no meio da galera. Alexandre completamente sem jeito resolver se sentar em um dos bancos da praça que estavam vazios. Nem percebeu quando Mia se sentou ao seu lado, mas sentiu uma descarga de ternura quando ela encostou a cabeça em seu ombro, já um pouco embriagada. Ela disse que por algum motivo se sentia bem ao lado dele. Uma espécie de calma reconfortante emanava do banqueiro, segundo ela. Ele resolveu seguir o que foi conversado na cachoeira e só curtiu o momento, sentindo a adorável fragrância floral que brotava dela. Fechou os olhos e colocou os braços ao redor da moça. De repente um beijo no rosto, depois na boca. E assim ficaram naturalmente juntinhos até o fim do Festival, sem forçar a barra, espontaneamente. Depois disso trocaram contatos e continuaram se falando, mesmo depois que eles foram embora. Não havia o compromisso de algo mais sério, ele já estava feliz de poder contar com o carinho da moça, mesmo que fosse à distância.
O veterinário achou Astolfo na cadeia por perturbação da ordem. O rapaz festejou de forma tão intensa que tirou a roupa e ficou muito louco com o excesso de cachaça. Depois de paga a fiança foi levado a um posto de saúde onde tomou glicose. De certa forma cada um acabou ganhando exatamente o que pretendia daquela viagem, que foi a primeira de muitas outras.
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