Conta um conto

terça-feira, 12 de março de 2024

O reencontro de Boca Seca e Suspirante

 Jagunços pertencentes ao bando de Tião Maniva, cresceram bons companheiros e se apoiaram nos momentos mais difíceis. Eram como irmãos que a vida ajuntou com gosto. Cruzavam o sertão de cima a baixo, na chuva e no sol. Por conta dessa convivência era praticamente impossível esconder segredos um do outro.



Baltazar Siqueira, também conhecido como Suspirante por conta de um problema de respiração, começou a notar que seu colega Boca Seca, cujo verdadeiro nome era Ademir Serra, estava se ausentando do bando com relativa frequência, dando desculpas frouxas e se distanciando em geral de todos.

Perguntou a ele se estava com algum problema, poderiam resolver juntos qualquer empecilho que surgisse, mas ele sempre desconversava e dizia que estava tudo como sempre esteve, sem motivos para ficar alarmado ou receoso. Obviamente que seu amigo não acreditou e foi por conta disso que ele foi o único sobrevivente de uma chacina de seu bando, surpreendidos na madrugada pelo bando de Chiquinho Canoca.

Já estava cismado com a movimentação estranha do colega e não estranhou quando ele se levantou de madrugada para caminhar até um ponto isolado. Ficou observando de longe e notou que tinha se afastado demais para tratar de necessidades fisiológicas. Não fazia sentido. Quando voltou de sua incursão noturna Boca Seca estava trazendo um alforge gordo que ele prendeu em seu cavalo. Baltazar puxou a sua espingarda e deu um tiro na alça do mesmo, que despencou e caiu no chão espalhando moedas por todo lado.


_ Seu traidor desgraçado! O que você vendeu em troca desse ouro? Perguntou Suspirante com a voz embargada de um sentimento que misturava raiva e decepção.

Ademir não respondeu nada e começou a pegar o dinheiro, mas o bando rival já tinha começado o seu genocídio e ele resolveu subir em seu cavalo para fugir. Quando estava quase sumindo no escuro tomou um tiro no pé esquerdo que lhe deixaria manco pelo resto de seus dias, um presente de despedida daquele que um dia o considerou seu irmão.

Sem a menor chance de se defender, especialmente porque estava em menor número, Baltazar pulou num barranco e se deixou levar pela gravidade, arranhando seu corpo em moitas espinhosas de Gabiroba do Campo enquanto quicava rolando na superfície pedregosa de um barranco imenso. Seu corpo ficou estirado no fim de uma ribanceira até o cessar dos disparos. Se levantou com dificuldade e pensou em voltar para pegar suas coisas, mas provavelmente o grupo rival já teria levado tudo. Sem contar que estava muito estropiado para subir aquele aclive. Foi se arrastando por várias horas até alcançar o vilarejo chamado Pequis, onde iria recriar a sua persona.

Depois de encontrar a alma caridosa de Anastácia Flores, uma bela mulata que cuidou dos ferimentos do rapaz até o mesmo recobrar as suas forças. Terminou se casando e tendo dois filhos com a moça anos depois. Arrumou serviço no armazém de secos e molhados local do Seu Braz, que também funcionava como um boteco para os moradores da região. Funcionário dedicado, acabou herdando o estabelecimento depois que o dono já velhinho faleceu.

Baltazar se tornou uma figura muito querida na cidadela. Abandonou a bebida para melhor gerenciar seu comércio e nunca começava uma briga, sempre optando pela diplomacia quando tinha de lidar com clientes difíceis. Estava quase esquecendo a sua vida anterior quando o inevitável aconteceu.

Foi numa tarde abafada de fevereiro. Estava sentado atrás do balcão, fazendo a digestão da dobradinha que sua esposa tinha feito com tanto carinho, quando uma figura do seu passado adentrou o armazém. Tinha deixado a barba crescer e andava mancando com a perna esquerda. Se aproximou, pediu uma cachaça. Suspirante serviu uma dose, sem saber se tinha sido reconhecido. De qualquer forma manteve o revólver ao alcance da mão, caso tivesse que usar.

O homem virou a bebida com calma, saboreando o líquido. Depois de um breve silêncio disse:

_ Essa é da boa. Põe outra dose.

Baltazar serviu e ele repetiu o comportamento. Então finalmente falou:

_ Sabe, eu fiquei muito tempo lhe procurando.

_ É mesmo? _ indagou o vendedor enquanto já pegava no revólver. _ E por qual motivo?

_ Algumas pendências do passado.

_ Não sei do que você está falando.

_ Não se faça de desentendido. Não reparou que entrei aqui mancando?

_ Tá querendo devolver a bala que lhe dei? Pode ficar.

_ Eu vou lhe devolver a bala sim, depois que você me pagar as moedas que perdi naquela noite.

_ Você traiu seus companheiros, saiu vivo e ainda se acha no direito de cobrar alguma coisa? Dê graças a Deus e siga sua vida. Tenho nada com isso não.

_ Você se remontou. Eu não. Meu ódio e minha dívida são tudo o que me resta. Preciso saciar os dois para poder me olhar no espelho novamente.

_ E você acha que me matar e roubar vai resolver todos os seus problemas?

_ Se eu quisesse simplesmente lhe matar, já teria entrado atirando. Além disso, andei perguntando por aí e fiquei sabendo que agora você tem esposa e filhos. Muito interessante.

_ Seu problema é comigo. Eles não têm nada a ver com nossa briga do passado!

_ Eu sei, só queria usar isso para te tirar do sério e forçar a aceitar a minha proposta.

_ O que você quer, Boca Seca?

_ Quero o rendimento mensal da sua venda, que irei levar depois de tirar a sua vida num duelo.

_ E se eu não aceitar?

_ Aí eu mato todo mundo, sua família e quem aparecer na minha frente. Depois pego o dinheiro e vou me embora.

_ Vamos conversar, sejamos razoáveis. Nós já fomos como irmãos, lembra? De onde vem essa mágoa toda?

_Você sempre foi certinho demais, mesmo sendo jagunço você se achava superior a todo mundo. Sempre pagando de bom moço. Você é carne ruim, como eu! Éramos mercenários, prontos para matar o que quer que fosse. Não se faça de santo. Você não pode simplesmente apagar todos os seus pecados e fingir que nada aconteceu. Eu tenho problemas para subir num cavalo até hoje por sua causa! Você me quebrou e não quer pagar por isso?

_ Muitos amigos nossos morreram naquela madrugada por causa da sua traição. Nunca te perdoarei por isso. Esse tiro que dei no seu pé foi porque eu estava triste demais para lhe matar. Desviei a espingarda no último segundo.

_ Ah, então quer dizer que você ia me atirar nas costas e não fez em nome da nossa amizade? Muito obrigado por nada!

Dizendo isso Boca Seca esticou o braço para dar um murro em Baltazar, mas foi impedido pelo balcão que os separava.

_ Acho que já deu de cachaça para você.

_ Sua família devia conhecer esse seu outro lado.

_ Já te pedi para deixá-los fora disso. Eu aceito a sua proposta. Diga hora e lugar que estarei lá. Qual a garantia eu tenho de que você deixará a minha família em paz, caso eu venha a falecer?

_ Você vai ter que confiar em mim. Disse ele com um sorriso irônico.

_ Você acabou de me dar mais uma motivação pra lhe matar.

_ Estava contando com isso. Iria odiar se você pegasse leve comigo.

_ Quer resolver isso agora?

_ Não, eu preciso me preparar, como você sabe eu não estou sóbrio, mas preciso confessar que estou muito a fim de estragar o seu rosto.

_ Eu já estou mais que treinado em esquivar soco de bebum. Não preciso desse esforço a mais. Pode ir se embora.

_ Eu vou a hora que eu quiser.

Baltazar saiu por detrás do balcão e Ademir partiu para dar um soco nele. Seus movimentos estavam bem lentos por conta da aguardente e mais uma vez ele errou. Suspirante o agarrou pela roupa e atirou para fora do armazém, fazendo com que seu rival caísse de peito na rua de terra.

_ Vai curar essa ressaca em outro lugar e não me encha a paciência! _ gritou o ex-jagunço para sua visita indesejada.

Naquela noite Baltazar ficou em dúvida se contava ou não para a sua esposa sobre o encontro que teve mais cedo com seu antigo parceiro de crimes. Foi para o quintal da sua casa e ficou fumando um cigarro de palha enquanto pensava nas palavras de Boca Seca. Já tinha feito várias coisas bastante condenáveis, mas sempre procurou estabelecer um limite para não se tornar alguém com a moral tão repulsiva como seu amigo, que tinha entregue a vida de seus amigos por dinheiro sem nenhuma outra motivação aparente.

Deitou-se na cama e não conseguia dormir, precisava sobreviver a qualquer custo para proteger aqueles que amava. Estava fora de combate há bastante tempo e pensou ter deixado tudo aquilo para trás, por isso nem se preocupou em continuar praticando tiro ou luta de faca. Simplesmente não fazia sentido. Pela primeira vez em sua vida sentiu medo de morrer.

Quando se levantou para tomar café no dia seguinte todos perceberam que ele estava estranho e perguntaram se havia acontecido alguma coisa de errado, mas ele desconversou dizendo que eram assuntos relacionados ao trabalho. Abraçou forte os seus filhos e beijou apaixonadamente a sua esposa.

Antes de ir para o trabalho pensou em se afastar um pouco para treinar tiro em uns potes de conserva vazios. Sua mira não estava como antes, mas dava para o gasto. Ficou um pouco mais aliviado. Enquanto caminhava em direção ao armazém avistou Ademir sentado em uma cadeira no meio da rua de terra.

_ Cansei de esperar! _ Gritou ele de longe. _ Quero resolver isso logo para depois consolar a viúva!

_ Eu até entendo essa sua necessidade de brigar, mas nada justifica você ficar gritando essas agressões. Francamente estou mais decepcionado do que irritado com você. Sempre te considerei tanto e...

Não terminou de falar porque Boca Seca avançou com uma faca em sua direção, dando tempo suficiente para que ele se abaixasse, acertando o seu estômago. Caiu sentado e puxou seu revólver em direção a Suspirante, mas não contava que o brilho do sol lhe cegaria temporariamente, facilitando para que Baltazar o desarmasse dando um chute em sua mão.


_ Vai embora. Acabou. Nós estamos velhos. Essa rixa não faz mais sentido. Nunca fez, na verdade. Você só quer uma desculpa para morrer em combate. Nosso tempo acabou, aceite isso. Vai arrumar algum motivo para viver além do que tínhamos antes.

_ Eu não sei fazer outra coisa. Preciso da adrenalina.

Se levantou novamente para atacar Suspirante, mas levou um muro na boca que o fez cair sentado no chão novamente. Desesperado sacou o revólver e mirou, mas tomou um tiro na cabeça, caindo para trás.

_ Adeus, meu amigo. _ disse Baltazar com a voz embargada. _ eu sinceramente não entendo o que te levou a ser consumido em tanta raiva e mágoa, mas espero que você esteja bem agora.

Enterrou Boca Seca mais tarde naquele dia, sentou-se em frente ao seu túmulo e tomou uma cachaça em sua homenagem. Levantou-se ao pôr do sol e enquanto voltava para casa lembrou-se de toda a sua trajetória com seu amigo, esperando que alma do mesmo agora estivesse finalmente em paz.

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