Kátia é uma excelente fotógrafa, o que é uma óbvia desvantagem para o seu cônjuge. Todo dia ela posta uma foto no Instagram com a hashtag #fazmelhorjuliano, que já gerou times rivais e muita discussão. No final ele era sempre obrigado a amargar a sua derrota. Chegou até a ficar deprimido por um bom tempo. Cada dia ela mesmo se superava tornando a vitória cada vez mais distante. Ele procurava novos ângulos, cores, luzes, temas, mas ela sempre arrumava um jeito de vencer indubitavelmente. Nem as extensas aulas nem a prática constante o fizeram superar sua nêmesis, até o inusitado bater em sua porta.
Estava na praça em frente ao seu prédio certa manhã ajustando o zoom de sua lente quando percebeu uma movimentação estranha no hall do seu prédio. Um loiro de cabelo escovinha e óculos escuros sacou uma arma e meteu uma bala na testa de um certo professor de Geografia que estava em lugar e hora errados. Não perdeu tempo e registrou todo o assassinato em uma bateria de fotos, desde que a bala saiu do cano do revólver. No momento ele não percebeu o risco que estava correndo, pois estava muito empolgado com a oportunidade que havia sido apresentada a ele. Nem quando postou com a hashtag #finalmentekatia. Escolheu uma foto onde a bala estava no meio da sua trajetória, captando o olhar de pavor da vítima que não fazia a mínima ideia do que estava acontecendo. Mal sabia ele que seu pesadelo estava apenas começando.
As curtidas em sua foto foram crescendo e ele ficou muito empolgado. Finalmente tinha chegado o seu dia!!! O telefone tocou. Era Kátia. Ele deixou tocar por um tempo, para “saborear” a vitória e depois atendeu casualmente, bem irônico:
_ Pois não?
_ Seu burro! Você faz idéia do que você postou?
_ Só a vitória plena, depois de tantas derrotas. Agora você conhece o gostinho da derrota, né? Olha como as curtidas só crescem! Parecem um manto me cobrindo de glórias!
_ E a que custo, hein sua besta? Você não faz idéia do perigo que está correndo!
_ Porquê? É impossível reconhecer o cara. A vítima muito menos.
_Alguém conhece esse cara que morreu. E quem matou vai querer apagar as evidências. Você nunca viu filme ou leu romance policial? É a trama mais batida que existe.
_ É impossível chegar até mim.
_ Eu que não vou ficar perto para ver. Você foi avisado. Tira essa porcaria de post.
_ Você bem que gostaria disso, né?
_ Nossa, sua burrice me dá tanta raiva!!!
Ele estava tão inebriado com a sua sensação de vitória que não percebeu o perigo que estava por vir. Nem notou que o corpo do homem que ele tinha visto morrer tinha magicamente desaparecido, sem nenhum traço incriminatório, ou seja, a foto tornou-se a única evidência daquele assassinato.
Afinal, como poderiam rastreá-lo? Será que o assassino o encontraria? Não tinha tantos seguidores assim. Será que Kátia estava certa ou só tinha arrumado uma desculpa para tirar ele do páreo? Todos esses pensamentos o perseguiram naquela noite. Kátia resolveu ficar um tempo morando com sua irmã, pois não iria ser cúmplice daquela maluquice e correr risco desnecessário. Quando ela saiu o fotógrafo começou a ficar realmente preocupado.
Era melhor tirar a postagem e admitir a derrota. Não valia a pena sofrer todos esses percalços por essa vitória que rapidamente tornou-se amarga em sua boca. Começou a suar frio e olhar por todos os lados ao andar pelo prédio. Passou a raramente sair para fazer compras e somente em caso de extrema necessidade. Por fim deletou a postagem, mas era tarde demais...já estava sendo caçado.
Quando estava quase se esquecendo do ocorrido, levantou certa manhã e viu o assassino na praça rondando e calculando uma possível distância da foto. E se viu a foto dele de perfil? Pela teoria dos seis graus de separação era realmente inevitável. Algum amigo do amigo do amigo certamente viu e o alertou. Como não tinha percebido isso antes? Sua boca ficou seca, a nuca fria e as pernas tremiam. O que fazer? Afinal, era questão de tempo até ele ser alcançado e acabar como o professor de Geografia.
Trancou todas as portas, fechou cortinas, apagou as luzes e ficou em silêncio deitado embaixo da sua cama com um lençol cobrindo o seu corpo. Perdeu a noção de quanto tempo ficou deitado ali. Beberia a própria urina se fosse necessário, ou as as lágrimas, o que era mais provável, pois depois de um tempo começou a chorar de pavor.
Ficou dias sem mover um músculo. A tensão o deixava dormir muito pouco. Cogitou até beber água da privada, para se movimentar o mínimo possível. Por fim ouviu uma movimentação nos corredores do seu prédio. Dois paramédicos conversavam do lado de fora:
_É a coisa mais absurda que já ouvi. Quem morre assim? O cara escorrega e cai de uma escada, batendo a cabeça. Parece comédia pastelão.
_ Eu já presenciei coisas mais bizarras nesse prédio. Eu te conto na volta para o hospital. Acho que tem um vodu cercando esse prédio. Te juro! Cada ocorrência aqui parece um episódio de Além da Imaginação.
_ Doideira. De onde surgiu todo esse sabão e essa água, se a faxineira está de folga? E porque esse cara não pegou o elevador?
_ Deixa isso para os investigadores, não cabe a nós responder essas perguntas. Deixa quieto e toca o barco.
Juliano tentou olhar pelo buraco da fechadura, mas não viu nada. Arriscou sair e conseguiu ver os dois saindo do prédio e carregando um cadáver coberto por um lençol branco numa maca. Sentou-se pálido no corredor do prédio com os olhos arregalados encarando o vazio. Afinal, o que tinha acontecido? Foi então que ele percebeu um casal de crianças olhando para ele no fundo do corredor. A menina cochichou algo no ouvido do menino, que começou a chorar e a vir correndo em sua direção:
_ Desculpa moço, desculpa! Foi sem querer! Eu não queria! _ e chorava de soluçar...
A menina veio andando devagar e explicou:
_ A gente estava brincando com água e sabão em pó. Era uma competição de quem fazia mais espuma. Aí a gente se empolgou e foi colocando cada vez mais água e mais sabão. Quando a gente viu tava saindo pelo corredor e indo para a escada...Aí a gente se escondeu dentro de casa. Fomos ver televisão e de repente ouvimos um barulhão do lado de fora. A gente só saiu agora. Seu amigo morreu num acidente que a gente causou. Foi sem querer, moço! Não dedura a gente!
_ Vocês viram quem morreu?
_ Não, a gente saiu agora.
_ Mas ele tava armado.
_ Como você sabe disso?
_ Eu vi o moço do hospital colocando uma arma dentro de um saco plástico.
_ Seu amigo andava armado porquê?_ perguntou a menina curiosa.
_ Ele não era meu amigo. _ disse Juliano. _ Na verdade ele era um cara muito perigoso, se é quem eu estou pensando...
Juliano se despediu das crianças e voltou para dentro do seu apartamento. Assim que trancou a porta, respirou aliviado e ligou para Kátia, afinal depois de tudo aquilo, ele tinha finalmente percebido que haviam coisas mais importantes na vida que uma mera competição de fotos. Não tinha ideia de como seria a sua vida dali em diante, pois até então suas motivações eram exclusivamente competitivas. De qualquer forma queria viver sem pressa. Deitou-se na cama e ficou olhando o teto, com um longo sorriso na boca.
Adorei, criativo,prende o leitor um desfecho inteligente sem envolver violência
ResponderExcluirMuito obrigado pelo carinho! São comentários assim que me motivam a continuar escrevendo!
ResponderExcluirSua escrita é envolvente, rica... Adorei seu conto!
ResponderExcluirParabéns, Gilson! Excelente texto, narrativa que gruda a gente do início ao fim!
ResponderExcluirMuito obrigado a todos pelo carinho! Isso me motiva a escrever e postar mais!
ResponderExcluirHehehe ótimo conto. Salvo por um golpe de sorte! Mas Kátia estava certa, quase que Juliano dançou! Rsrs
ResponderExcluirMuito obrigado pelo carinho! Juliano brincou com a sorte! Kkkkkk
ExcluirExcelente, Gilson! Fiquei ansiosa pelo desfecho!
ResponderExcluirFico muito feliz que você tenha gostado! Obrigado pela força e pelo carinho!
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