Conta um conto

domingo, 21 de fevereiro de 2021

A saga das irmãs Gecko

 



Linsa e Shara nasceram no deserto de Honto com uma estranha singularidade. A mãe Frauke e o pai Jasper, ambos de pele morena e queimada pelo sol tiveram duas filhas gêmeas com a pele branca como giz. No pequeno vilarejo de Bertio, situado ao redor de um oásis, elas eram vistas como aberrações. A subsistência da casa era uma cola cuja receita era passada de geração para geração.  


Como não tinham muitas opções de entretenimento, as garotas passavam o dia vendo a mãe preparar o líquido viscoso enquanto o pai viajava para o oeste a fim de coletar a resina que era a base daquele produto., muito vendido na região porque tinha várias utilidades. Ela vendia porque precisava do dinheiro, mas tinha nojo de seus vizinhos por conta do preconceito que suas filhas sofriam. Quando cresceram, as gêmeas começaram a se separar, sempre alternando para acompanhar o pai que já não aguentava mais aquele ritmo. 


As viagens para coletar a resina da árvore Sagroya na Floresta dos Sussurros não era fácil. Eram dias marchando na areia quente usando uma máscara que cobria a boca e o nariz, além de um visor fabricado com vidro reforçado para evitar a areia nos olhos. Depois de um tempo o pai passou a ser carregado por uma esteira que era atrelada a um camelo, pois seu corpo já apresentava claros sinais de desgaste. Ocasionalmente eram assessorados pelos Vigias da Areia, uma tropa especial de guerreiros que eram escolhidos nos vilarejos e treinados para proteger o deserto, bem como seus arredores. Linsa achava eles muito arrogantes e machistas, mas entendia a importância de sua existência. Sua irmã os admirava, sempre falava que seu sonho era treinar e lutar como eles, tornar-se uma heroína e detonar geral, nas palavras dela. O excesso de roupas e proteções evitava comentários e desaforos desnecessários, pois cobria o seu corpo inteiro. Ao contrário dela, não queria agito. Gostava de ler, aprender e inventar aparelhos que aumentassem a eficiência de uma atividade. Era muito prudente, desenhava projetos e tinha vontade de um dia poder vendê-los na cidade que ficava depois do deserto. 





O tempo foi passando e elas já estavam entrando na idade adulta quando de repente tudo mudou. A família estava toda reunida em casa almoçando quando a iluminação dentro da casa diminuiu drasticamente. Seria um eclipse? 


Shara foi para a janela e olhou o que estava obstruindo da luz, mas ficou boquiaberta sem conseguir descrever...Nunca tinha visto um tanque tão largo e alto como uma montanha ambulante, com fumaça saindo de vários tubos laterais e traseiros. Enquanto sua cabeça processava aquela imagem vários humanóides altos saltavam do veículo usando cordas. Eram altos, esguios, com cimitarras presas às suas costas. Soltavam guinchos assustadores com o claro propósito de intimidação. 


_ O que está acontecendo, minha filha? _ perguntou Jasper que estava longe da janela e tinha dificuldade para se levantar. 


_ Eu diria que estamos sendo invadidos por alguma espécie de gangue. Respondeu ela com uma certa dificuldade em acreditar nas palavras que estavam saindo de sua boca. O primeiro impulso de Linsa foi vestir as roupas de expedição e pedir à irmã que fizesse o mesmo, pois aquilo impediria que fossem identificadas como mulheres e consequentemente estupradas. Levaram os pais para um depósito subterrâneo onde a cola ficava um tempo até esfriar e ser vendida. Os invasores avançavam numa velocidade inacreditável, matando e pilhando, mal dando tempo para elas esconderem os dois e vestirem as roupas. 


_ Preciso de uma foice, uma faca ou uma espada! _ bradou Shara cerrando os dentes! Eles não sabem com quem se meteram! Ninguém toma a nossa casa assim! 


_ Eles sabem exatamente com quem se meteram, pára de bancar a doida suicida e vem comigo para a gente fugir no deserto por um dia ou dois até eles irem embora! 


_ Eles não vão embora, eles querem o Oásis, você não percebeu ainda? 


_ Sim, mas eles vão montar um posto avançado, no máximo. 


_ E os nossos pais? Você vai deixá-los aqui? 


_ A gente volta para resgatar depois. Enquanto a gente discute já poderíamos ter fugido e.. 


Linsa não conseguiu terminar a frase porque viram um dos humanóides esguios vindo na direção delas, sacudindo a sua espada e gritando.  Enquanto ela ficou sem reação pelo susto, Shara rodou e arremessou um saco de couro cheio de cola. O invasor cortou o recipiente, espalhando o líquido viscoso por todo o seu corpo, especialmente nos olhos, deixando-o cego e fazendo com que ele soltasse a cimitarra para soltar a sua visão. A garota mais que depressa pegou a arma e fez menção de matá-lo. 


_ Não! _ Gritou Linsa. _ Por favor não faça isso! 


_ Como assim? Não estou te entendendo. Depois de tudo o que eles fizeram e estão fazendo? 


_ Nós não somos como eles. Se você fizer isso vai atravessar uma linha sem retorno. Vamos aproveitar e fugir. Faça só isso agora, por mim. Depois a gente conversa melhor. 


Shara segurou a espada, respirou fundo, fechou os olhos e seguiu a irmã, que arrumava as provisões no camelo. O humanóide cego ouviu tudo e gritou desafiando a garota: 


_ Vai fugir correndo, sua covarde? Só podia ser mulher mesmo... 


A moça voltou correndo e num só golpe cortou fora uma das pernas dele, que sem equilíbrio bateu a cabeça numa parede e desmaiou. 


_ Minha irmã tinha razão! É muito melhor você viver sabendo o resto de sua vida que uma mulher te aleijou! Aproveitou e cortou a outra perna também, dando um sorriso de satisfação. Quando se virou Linsa olhava sério para ela. 


_ O quê? Eu não matei ele! 


 Ela só sorriu e disse: 


_ Sabe que ele não ouviu nada que você falou, né? 


_ Não importa, ele vai saber! 


_ Vamos embora, sua doida. Estamos atrasadas. Vamos procurar os Vigias da Areia. Mesmo que eu os deteste, não vejo outra opção para o nosso caso. 


_ A gente nem sabe onde eles estão. 


_ Então vamos para a Floresta dos Sussurros. Lá a gente pensa no próximo passo. Pegaram bastante cola, provisões e seguiram para oeste. 


_ Pra que você pegou esse monte de cola?_ perguntou Linsa 


_ Toda aquela situação com o humanoide e a cola me fez pensar...e se a gente usar isso a nosso favor? 

 

_ Como arma? 


_ Talvez, mais especificamente como diferencial. Imagina essas bolsas de colas inflamáveis. Imagina a loucura que seria! 


_ Te falei que não curto essa história de matar. Transforma a gente. 


_ A gente já mudou! Não somos as mesmas de hoje de manhã! Somos nós contra eles. Não tem meio termo. 


Seguiram viajando preocupadas com os pais que deixaram escondidos no depósito. Em certo ponto Linsa chorou bastante, mas a máscara disfarçou as suas lágrimas. Nas veias de Shara só corria ódio e adrenalina. Durante o percurso não avistaram nem sinal dos Vigias da Areia. 


Quando acamparam na Floresta dos Sussurros, começaram a anotar aplicações práticas daquela cola para enfrentar os seus agressores. A irmã mais prudente sugeriu jogar cola nas engrenagens para travar o tanque e impedir os seus avanços, o que foi uma ótima idéia. A outra só queria saber de incendiar tudo a qualquer custo. Enfim concordaram em fazer as duas coisas, mas planejando com calma. 



Aproveitaram aquele curto exílio para aperfeiçoar suas habilidades no arco e flecha. Seu pai as tinha ensinado desde cedo a caçar na floresta. Shara fez experimentos com a fórmula da cola nos seus trajes de expedição para que ela facilitasse suas escaladas em lugares íngremes, criando uma aderência que permitisse tal habilidade. 


_ Vamos andar pelas paredes como Geckos! É tão legal isso, né? 


_ Você está se divertindo com isso de uma maneira bastante preocupante. _ suspirou Linsa enquanto achava uma certa graça no entusiasmo da irmã. 


As tentativas foram inúmeras e os tombos também. Por fim chegaram na medida ideal de cola que as permitia subir pelas árvores com uma facilidade impressionante, aplicando nas luvas e nas botas. O segredo era andar rápido o suficiente para o líquido viscoso não ter tempo de secar. Shara manteve a sua espada e treinou o seu manuseio por dias, a contragosto de sua irmã que passou o tempo construindo ganchos, tirolesas e carretilhas.  

Certa noite estavam se preparando para dormir quando ouviram um barulho vindo da escuridão da floresta. Felizmente a fogueira já estava apagada e elas subiram em árvores próximas para avistar o que estava se aproximando. Um vulto veio cambaleando e caiu nas proximidades. Elas desceram cautelosamente para verificar quem era. Linsa acendeu uma tocha e ficou surpreendida quando viu que se tratava do líder dos Vigias da Areia. Seu nome era Cyoke. Os invasores do Oásis tinham os subornado para fazer vista grossa, mas ele foi contra, junto com seu companheiro Veual, que foi morto quase instantaneamente pelos guerreiros corruptos. Ele mal conseguiu fugir e se esconder na floresta. Tinha andado por dias comendo raízes e frutas, sem armas e cansado. Linsa achou aquilo tudo muito suspeito, mas percebeu que parte desse “achismo” era preconceito. Shara achou que era válido contar a história delas e o chamou para se juntar ao bando. 


_ Isso tudo que vocês estão programando é muito nobre, mas não acho que tenham chance. 


_ Isso é porque somos mulheres? 


_ Mulheres em menor número. Além disso vocês não tem treinamento de batalha. 


_ Você não me viu lutando. _ respondeu Shara. Tenho treinado nas árvores todos os dias. 


_Árvores não revidam. _ respondeu ele rindo. 


_ Por isso eu acho que temos mais chance se formos na surdina. Vocês dois cuidam dos humanoides enquanto eu planto a cola nas engrenagens e planto o pavio no combustível. 


_ Parece bastante suicida, mas faz sentido. Estou dentro. _ disse Cyoke com a convicção de quem está caminhando para a própria morte porque não tem mais nada a perder. 


Shara aprendeu algumas técnicas de combate com o novo integrante, o que foi realmente proveitoso. Após os preparativos, resolveram partir. O tempo era curto pois os pais da dupla continuavam escondidos e era questão de tempo até eles serem descobertos. 


Quando voltaram para Bertio, a mesma estava cercada de humanoides fazendo rondas por todos os seus arredores. Avançaram com cuidado, rendendo um guarda por vez e mantendo o sigilo sempre. Na verdade, eles estavam um pouco relaxados, confiantes no seu arsenal e no seu considerável número de guerreiros. As garotas tinham o elemento surpresa a seu favor e elas não desperdiçaram nenhuma chance, andando por cima dos telhados das casas e muros, sempre atentas aos movimentos dos humanoides. Cyoke preparou uma gigantesca explosão no depósito de pólvora para criar uma distração. Assim que as garotas deram o sinal ele acendeu o pavio e fugiu num cavalo para ressurgir no lado oposto. Alguns humanoides o viram e foram correndo em sua direção, mas não conseguiram alcançá-lo, mesmo com as suas pernas bastante compridas. 


Enquanto isso Linsa e Shara foram ganhando terreno até chegar à fortaleza ambulante, que era ainda mais imponente no escuro. Subiram as laterais utilizando a cola nos pés e chegaram à escotilha no teto. Tinha um humanoide guardando a entrada, mas acabou sendo morto pela irmã com a cimitarra que se virou para a outra e disse: 


_ Depois você briga comigo. 


Foram descendo até a casa das máquinas, tomando cuidado para não acordar os soldados que estavam dormindo lá dentro. Chegaram na casa das máquinas e despejaram o líquido viscoso por todas as engrenagens. 


_ Ótimo, agora vamos armar a bomba de combustível e ir embora. 


_ Não me sinto bem em matar essas criaturas dormindo, parece covardia da nossa parte.

 

_ Covardia foi o que eles fizeram conosco, nem sabemos se nossos pais estão vivos. Você iria preferir que todo mundo estivesse acordado e tentando matar a gente? 


_ Eu sei, ainda estou processando essa nova vida, só isso. 


Estavam quase saindo quando uma das criaturas as avistou e soou o alarme. Elas subiram correndo a última escada e Shara segurou a escotilha enquanto Linsa atirou uma flecha com cola em uma das casas. Desceram abraçadas numa tirolesa enquanto os humanoides saiam da fortaleza como saúvas do formigueiro. 


Cyoke, que já tinha resgatado os pais delas, atirou uma flecha incendiária no ponto que elas tinham marcado antes de entrar na fortaleza, atingindo o tanque de combustível e transformando a fortaleza numa bola de fogo que iluminou metade do deserto naquela noite. 



Linsa e Shara se reuniram com os seus pais, mas tiveram que se separar novamente. Cyoke os escoltou para a floresta dos Sussurros e elas tiveram que seguir um outro caminho, pois agora estavam sendo caçadas por quem quer que estivesse controlando aqueles humanoides. A aventura das irmãs Gecko estava apenas começando... 

3 comentários:

  1. Conto muito envolvente! A história vai se desenrolando e novos e inusitados elementos vão surgindo. Fiquei muito curiosa com o desenrolar da história. Fico, aqui, na expectativa :)

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  2. Fico muito feliz que você tenha gostado! Elas retornarão com certeza!😉👍

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  3. Adorei a história e já estou esperando as outras aventuras das irmãs! Muito bem escrito com riqueza de detalhes. Parabéns!

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