Linsa e Shara nasceram no
deserto de Honto com uma
estranha singularidade. A mãe Frauke e o pai Jasper,
ambos de pele morena e queimada pelo sol tiveram duas filhas gêmeas com a pele
branca como giz. No pequeno vilarejo de Bertio, situado ao redor de
um oásis, elas eram vistas como aberrações. A subsistência da casa era uma cola
cuja receita era passada de geração para geração.
Como não tinham
muitas opções de entretenimento, as garotas passavam o dia vendo a mãe preparar
o líquido viscoso enquanto o pai viajava para o oeste a fim de coletar a resina
que era a base daquele produto., muito vendido na região porque tinha várias
utilidades. Ela vendia porque precisava do dinheiro, mas tinha nojo de seus
vizinhos por conta do preconceito que suas filhas sofriam. Quando cresceram, as
gêmeas começaram a se separar, sempre alternando para acompanhar o pai que já
não aguentava mais aquele ritmo.
As viagens para
coletar a resina da árvore Sagroya na Floresta dos
Sussurros não era fácil. Eram dias marchando na areia quente usando uma máscara
que cobria a boca e o nariz, além de um visor fabricado com vidro reforçado
para evitar a areia nos olhos. Depois de um tempo o pai passou a ser carregado
por uma esteira que era atrelada a um camelo, pois seu corpo já apresentava
claros sinais de desgaste. Ocasionalmente eram assessorados pelos Vigias da
Areia, uma tropa especial de guerreiros que eram escolhidos nos vilarejos e
treinados para proteger o deserto, bem como seus arredores. Linsa achava eles
muito arrogantes e machistas, mas entendia a importância de sua existência. Sua
irmã os admirava, sempre falava que seu sonho era treinar e lutar como eles,
tornar-se uma heroína e detonar geral, nas palavras dela. O excesso de roupas e
proteções evitava comentários e desaforos desnecessários, pois cobria o seu
corpo inteiro. Ao contrário dela, não queria agito. Gostava de ler, aprender e
inventar aparelhos que aumentassem a eficiência de uma atividade. Era muito
prudente, desenhava projetos e tinha vontade de um dia poder vendê-los na
cidade que ficava depois do deserto.
O tempo foi passando
e elas já estavam entrando na idade adulta quando de repente tudo mudou. A
família estava toda reunida em casa almoçando quando a iluminação dentro da
casa diminuiu drasticamente. Seria um eclipse?
Shara foi para a janela e olhou o que estava obstruindo da luz, mas ficou boquiaberta sem conseguir descrever...Nunca tinha visto um tanque tão largo e alto como uma montanha ambulante, com fumaça saindo de vários tubos laterais e traseiros. Enquanto sua cabeça processava aquela imagem vários humanóides altos saltavam do veículo usando cordas. Eram altos, esguios, com cimitarras presas às suas costas. Soltavam guinchos assustadores com o claro propósito de intimidação.
_ O que está
acontecendo, minha filha? _ perguntou Jasper que estava longe da janela e tinha
dificuldade para se levantar.
_ Eu diria que
estamos sendo invadidos por alguma espécie de gangue. Respondeu ela com uma
certa dificuldade em acreditar nas palavras que estavam saindo de sua boca. O
primeiro impulso de Linsa foi vestir as
roupas de expedição e pedir à irmã que fizesse o mesmo, pois aquilo impediria
que fossem identificadas como mulheres e consequentemente estupradas. Levaram
os pais para um depósito subterrâneo onde a cola ficava um tempo até esfriar e
ser vendida. Os invasores avançavam numa velocidade inacreditável, matando e
pilhando, mal dando tempo para elas esconderem os dois e vestirem as roupas.
_ Preciso de uma
foice, uma faca ou uma espada! _ bradou Shara cerrando os
dentes! Eles não sabem com quem se meteram! Ninguém toma a nossa casa assim!
_ Eles sabem
exatamente com quem se meteram, pára de bancar a
doida suicida e vem comigo para a gente fugir no deserto por um dia ou dois até
eles irem embora!
_ Eles não vão embora,
eles querem o Oásis, você não percebeu ainda?
_ Sim, mas eles vão
montar um posto avançado, no máximo.
_ E os nossos pais?
Você vai deixá-los aqui?
_ A gente volta para
resgatar depois. Enquanto a gente discute já poderíamos ter fugido e..
Linsa não conseguiu
terminar a frase porque viram um dos humanóides esguios vindo
na direção delas, sacudindo a sua espada e gritando. Enquanto ela ficou
sem reação pelo susto, Shara rodou e
arremessou um saco de couro cheio de cola. O invasor cortou o recipiente,
espalhando o líquido viscoso por todo o seu corpo, especialmente nos olhos,
deixando-o cego e fazendo com que ele soltasse a cimitarra para soltar a sua
visão. A garota mais que depressa pegou a arma e fez menção de matá-lo.
_ Não! _ Gritou Linsa. _ Por favor não
faça isso!
_ Como assim? Não
estou te entendendo. Depois de tudo o que eles fizeram e estão fazendo?
_ Nós não somos como
eles. Se você fizer isso vai atravessar uma linha sem retorno. Vamos aproveitar
e fugir. Faça só isso agora, por mim. Depois a gente conversa melhor.
Shara segurou a
espada, respirou fundo, fechou os olhos e seguiu a irmã, que arrumava as
provisões no camelo. O humanóide cego ouviu tudo
e gritou desafiando a garota:
_ Vai fugir correndo,
sua covarde? Só podia ser mulher mesmo...
A moça voltou
correndo e num só golpe cortou fora uma das pernas dele, que sem equilíbrio
bateu a cabeça numa parede e desmaiou.
_ Minha irmã tinha
razão! É muito melhor você viver sabendo o resto de sua vida que uma mulher te
aleijou! Aproveitou e cortou a outra perna também, dando um sorriso de
satisfação. Quando se virou Linsa olhava sério
para ela.
_ O quê? Eu não matei ele!
Ela só sorriu e
disse:
_ Sabe que ele não
ouviu nada que você falou, né?
_ Não importa, ele
vai saber!
_ Vamos embora, sua
doida. Estamos atrasadas. Vamos procurar os Vigias da Areia. Mesmo que
eu os deteste, não vejo outra opção para o nosso caso.
_ A gente nem sabe
onde eles estão.
_ Então vamos para a
Floresta dos Sussurros. Lá a gente pensa no próximo passo. Pegaram bastante
cola, provisões e seguiram para oeste.
_ Pra que você pegou
esse monte de cola?_ perguntou Linsa
_ Toda aquela situação com o humanoide e a cola me fez pensar...e se a gente usar isso a nosso favor?
_ Como arma?
_ Talvez, mais
especificamente como diferencial. Imagina essas bolsas de colas inflamáveis.
Imagina a loucura que seria!
_ Te falei que não
curto essa história de matar. Transforma a gente.
_ A gente já mudou!
Não somos as mesmas de hoje de manhã! Somos nós contra eles. Não tem meio
termo.
Seguiram viajando
preocupadas com os pais que deixaram escondidos no depósito. Em certo
ponto Linsa chorou
bastante, mas a máscara disfarçou as suas lágrimas. Nas veias de Shara só corria ódio
e adrenalina. Durante o percurso não avistaram nem sinal dos Vigias da Areia.
Quando acamparam na
Floresta dos Sussurros, começaram a anotar aplicações práticas daquela cola
para enfrentar os seus agressores. A irmã mais prudente sugeriu jogar cola nas
engrenagens para travar o tanque e impedir os seus avanços, o que foi uma
ótima idéia. A outra só queria
saber de incendiar tudo a qualquer custo. Enfim concordaram em fazer as duas
coisas, mas planejando com calma.
Aproveitaram aquele
curto exílio para aperfeiçoar suas habilidades no arco e flecha. Seu pai as
tinha ensinado desde cedo a caçar na floresta. Shara fez
experimentos com a fórmula da cola nos seus trajes de expedição para que ela
facilitasse suas escaladas em lugares íngremes, criando uma aderência que
permitisse tal habilidade.
_ Vamos andar pelas
paredes como Geckos! É tão legal isso,
né?
_ Você está se
divertindo com isso de uma maneira bastante preocupante.
_ suspirou Linsa enquanto achava
uma certa graça no entusiasmo da irmã.
As tentativas foram
inúmeras e os tombos também. Por fim chegaram na medida ideal de cola que as
permitia subir pelas árvores com uma facilidade impressionante, aplicando nas
luvas e nas botas. O segredo era andar rápido o suficiente para o líquido
viscoso não ter tempo de secar. Shara manteve a sua
espada e treinou o seu manuseio por dias, a contragosto de sua irmã que passou
o tempo construindo ganchos, tirolesas e carretilhas.
Certa noite estavam
se preparando para dormir quando ouviram um barulho vindo da escuridão da
floresta. Felizmente a fogueira já estava apagada e elas subiram em árvores
próximas para avistar o que estava se aproximando. Um vulto veio cambaleando e
caiu nas proximidades. Elas desceram cautelosamente para verificar quem
era. Linsa acendeu uma
tocha e ficou surpreendida quando viu que se tratava do líder dos Vigias da
Areia. Seu nome era Cyoke. Os invasores do
Oásis tinham os subornado para fazer vista grossa, mas ele foi contra, junto
com seu companheiro Veual, que foi morto quase
instantaneamente pelos guerreiros corruptos. Ele mal conseguiu fugir e se
esconder na floresta. Tinha andado por dias comendo raízes e frutas, sem armas
e cansado. Linsa achou aquilo
tudo muito suspeito, mas percebeu que parte desse “achismo” era
preconceito. Shara achou que era
válido contar a história delas e o chamou para se juntar ao bando.
_ Isso tudo que vocês
estão programando é muito nobre, mas não acho que tenham chance.
_ Isso é porque somos
mulheres?
_ Mulheres em menor
número. Além disso vocês não tem treinamento de batalha.
_ Você não me viu
lutando. _ respondeu Shara. Tenho treinado nas
árvores todos os dias.
_Árvores
não revidam. _ respondeu ele rindo.
_ Por isso eu acho que temos mais
chance se formos na surdina. Vocês dois cuidam dos humanoides enquanto eu
planto a cola nas engrenagens e planto o pavio no combustível.
_ Parece bastante suicida, mas faz
sentido. Estou dentro. _ disse Cyoke com a convicção de quem está
caminhando para a própria morte porque não tem mais nada a perder.
Shara aprendeu algumas técnicas de
combate com o novo integrante, o que foi realmente proveitoso. Após os
preparativos, resolveram partir. O tempo era curto pois os pais da dupla
continuavam escondidos e era questão de tempo até eles serem descobertos.
Quando voltaram para Bertio, a mesma estava cercada de
humanoides fazendo rondas por todos os seus arredores. Avançaram com cuidado,
rendendo um guarda por vez e mantendo o sigilo sempre. Na verdade, eles estavam
um pouco relaxados, confiantes no seu arsenal e no seu considerável número de
guerreiros. As garotas tinham o elemento surpresa a seu favor e elas não
desperdiçaram nenhuma chance, andando por cima dos telhados das casas e muros,
sempre atentas aos movimentos dos humanoides. Cyoke preparou uma gigantesca
explosão no depósito de pólvora para criar uma distração. Assim que as garotas
deram o sinal ele acendeu o pavio e fugiu num cavalo para ressurgir no lado
oposto. Alguns humanoides o viram e foram correndo em sua direção, mas não
conseguiram alcançá-lo, mesmo com as suas pernas bastante compridas.
Enquanto isso Linsa e Shara foram ganhando terreno até
chegar à fortaleza ambulante, que era ainda mais imponente no escuro. Subiram
as laterais utilizando a cola nos pés e chegaram à escotilha no teto. Tinha um
humanoide guardando a entrada, mas acabou sendo morto pela irmã com a cimitarra
que se virou para a outra e disse:
_ Depois você briga comigo.
Foram descendo até a casa das
máquinas, tomando cuidado para não acordar os soldados que estavam dormindo lá
dentro. Chegaram na casa das máquinas e despejaram o líquido viscoso
por todas as engrenagens.
_ Ótimo, agora vamos armar a bomba
de combustível e ir embora.
_ Não me sinto bem em matar essas criaturas dormindo, parece covardia da nossa parte.
_ Covardia foi o que eles fizeram
conosco, nem sabemos se nossos pais estão vivos. Você iria preferir que todo
mundo estivesse acordado e tentando matar a gente?
_ Eu sei, ainda estou processando
essa nova vida, só isso.
Estavam quase saindo quando uma
das criaturas as avistou e soou o alarme. Elas subiram correndo a última escada
e Shara segurou a escotilha
enquanto Linsa atirou uma flecha com cola
em uma das casas. Desceram abraçadas numa tirolesa enquanto os humanoides saiam
da fortaleza como saúvas do formigueiro.
Cyoke, que já tinha resgatado os pais
delas, atirou uma flecha incendiária no ponto que elas tinham marcado antes de
entrar na fortaleza, atingindo o tanque de combustível e transformando a
fortaleza numa bola de fogo que iluminou metade do deserto naquela noite.
Linsa e Shara se reuniram com os seus
pais, mas tiveram que se separar novamente. Cyoke os escoltou para a floresta
dos Sussurros e elas tiveram que seguir um outro caminho, pois agora estavam
sendo caçadas por quem quer que estivesse controlando aqueles humanoides. A
aventura das irmãs Gecko estava apenas começando...
Conto muito envolvente! A história vai se desenrolando e novos e inusitados elementos vão surgindo. Fiquei muito curiosa com o desenrolar da história. Fico, aqui, na expectativa :)
ResponderExcluirFico muito feliz que você tenha gostado! Elas retornarão com certeza!😉👍
ResponderExcluirAdorei a história e já estou esperando as outras aventuras das irmãs! Muito bem escrito com riqueza de detalhes. Parabéns!
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