Conta um conto

terça-feira, 26 de março de 2024

Central dos Autônomos

 O apartamento 101 era onde se reunia o núcleo mais jovem do prédio. Pessoas que ainda tinham muitos sonhos ainda a ser conquistados, muitas frustrações e corações partidos que despontarão no horizonte provisoriamente longínquo em suas vidas. Vivem e desfrutam do sabor de cada momento tentando ganhar o pão de cada dia aos trancos e barrancos. 

Os cinco habitantes que dividem o aluguel são a confeiteira Isabel, Leila que passeia com cachorros e ocasionalmente faz bico de babá, o motoboy Maurinho, o motorista de aplicativo Plínio e o fotógrafo Sócrates. Não se sabe ao certo como e quando esse time foi formado, mas as relações interpessoais são bastante respeitosas, caso contrário esse esquema não funcionaria.

 Todos desviam uma parte do seu limitado orçamento para pagar as contas e o aluguel, embora insistam em fazer festas quase todo dia, sem considerar a economia necessária para andar com os pagamentos em dia. Isso gera várias discussões, pois alguns tentam ser mais responsáveis enquanto outros só querem curtir sem se preocupar com o dia seguinte.

_ A gente precisa de um jarro, colocar tudo certinho numa planilha ou então todo mês vai ser esse stress. Não aguento mais essa incerteza, gente. Não consigo nem dormir direito. _ pontuou Isabel, que acaba sendo uma espécie de irmã mais velha do grupo.

_ É uma boa ideia, mas nós dois somos minoria aqui. _ afirmou Plínio que tinha um leve interesse amoroso na cozinheira.

_ A gente precisa dessas reuniões para conhecer possíveis novos empregadores, é assim que funciona hoje em dia. Esse negócio de mandar currículo já era. _ disse Maurinho para defender o esquema atual de curtição.

_ Eu também gosto de diversão, mas pelo menos não fico inventando desculpa fajuta para me justificar. Eu só assumo e pronto. A gente rala tanto, aguenta tanta gente insuportável que é bom ter uma válvula de escape.

_ O que vem de baixo não me atinge. _ disse o motoboy fazendo uma brincadeira com a baixa estatura da moça. _ ainda não entendo como você carrega uns cachorros que são duas vezes o seu tamanho. Se botar uma sela dá para você cavalgar igual cavalo.

A garota respondeu apenas fazendo uma cara feia e dando a língua para ele, sem intenção de começar uma briga.

Sócrates encerrou a discussão propondo um meio termo entre os dois lados, tendo em vista que ele é o mais diplomático, sempre evitando conflitos, chegando inclusive a sofrer bastante com isso, pois acaba assimilando emocionalmente muita energia ruim que deveria ser extravasada, mas fica presa ocasionando tiques e dores de cabeça.

Assim os dias caminhando, como uma montanha russa onde o destino era incerto quando surgiu um evento que traria oportunidades para o quinteto: Adelaide, uma das patroas de Leila afirmou que sua filha iria se casar e estava pensando em fazer a festa com um orçamento mais modesto, porque ela estava economizando para fazer uma viagem, o que obviamente gerou várias discussões dentro daquela família. Isabel ficou responsável pelo buffet, Sócrates pelas fotos e Plínio ficaria na área para o transporte de alguns convidados. 

Leila por sua vez iria como convidada e Maurinho era o único sem motivo aparente para ir, mas por acaso ele era o ex da noiva e ainda não havia superado o término. Isso gerou uma tensão enorme no grupo, que antecipava uma tempestade se formando. A passeadora de cães era a mais preocupada, pois um desastre dessa magnitude poderia lhe custar uma de suas empregadoras mais rentáveis. Ela chegou até mesmo a pensar em dopar o motoboy com o Rivotril que usava para dormir, mas depois achou aquilo tudo muito extremo e desistiu da ideia.

Todos então se reuniram para conversar com o rapaz para que ele não fizesse nada que fosse gerar algum problema naquele evento tão importante para todos eles. Explicaram de todas as maneiras possíveis para que ele entendesse, mas ainda assim Maurinho não aceitava que ela ficasse com outro que não fosse ele. Começou então a pensar secretamente em maneiras de sabotar aquele casamento. Estaria lá de qualquer jeito para atrapalhar, nem se fosse como penetra.

Apesar de todo aquele possível contratempo, o resto do pessoal continuou investindo nos seus afazeres para entregar o melhor serviço possível, acreditando que aquele seria um grande cartão de visitas para catapultar suas respectivas carreiras.

Quando enfim chegou o dia do grande evento, todos estavam mais do que prontos para dar o seu melhor. Capricharam no visual e foram no carro de Plínio. Maurinho resolveu tentar a sorte em meio a todo aquele infortúnio que o cercava e resolveu comprar um bilhete de loteria, para ver se ganhava algum dinheiro e melhorava o seu humor naquele momento. O sorteio sairia em alguns dias, mas pelo menos lhe deu algo para pensar que não fosse a ex-namorada. Deitou-se na cama e ficou olhando o teto depois que todos saíram.

A decoração da festa estava bastante chique. O grupo chegou com algumas horas de antecedência, para deixar tudo preparado. Plínio, Leila e Sócrates foram para a igreja, enquanto Isabel ficou arrumando a comida na recepção, que era em um enorme sítio da família.

Quando chegou o momento da festa, estava tudo pronto e muito bonito. Uma das madrinhas começou a flertar com o fotógrafo, deixando a passeadora de cachorros com muito ciúmes, sentimento esse que era desconhecido até mesmo para ela. Tinha muita afinidade com Sócrates e o achava atraente, mas nunca tinha pensado em nenhum envolvimento com ele até aquele momento. Se sentiu confusa. Aquela sensação era nova, diferente e ela não sabia lidar com isso. Seu primeiro impulso foi puxar o cabelo da garota e fingir que tinha acidentalmente prendido a sua pulseira nas madeixas dela. Depois disso o rapaz se afastou das duas, sem entender nada.

As crianças ficaram entediadas na festa e resolveram fazer uma travessura. Enquanto todos estavam distraídos dançando elas resolveram soltar os cachorros do canil, sendo que entre eles estava o Dogue Alemão Maximus, que tinha aproximadamente 90 cm de altura. A matilha entrou correndo no meio das festividades, atraída pelo cheiro da comida e derrubando tudo. Os garçons ganharam dentadas nas pernas para assim soltarem as bandejas. Os risos dos pequenos logo denunciaram a sua autoria do delito. Foram sentenciados a ficarem detidos em um dos quartos da sede, até a festa acabar.

O primeiro impulso de Leila foi tentar conter os cachorros, mas seus reflexos estavam prejudicados porque ela tinha decidido beber para sublimar os seus sentimentos pelo fotógrafo. Pulou para agarrar o pescoço do imenso canídeo, mas acabou errando o alvo, ficando assim presa (dessa vez de verdade) ao dogue alemão, que se desequilibrou e caiu em cima dela. Todos começaram a rir com exceção do fotógrafo que se prontificou a salvar a sua amiga. Quando a passeadora foi tentar dizer alguma coisa, novamente a madrinha interveio e puxou Sócrates pelo braço, levando-o para longe dali. 

A garota solitária e confusa deitou-se num banco de madeira branca e ficou olhando o céu estrelado, esperando aquilo tudo acabar rápido. Sentiu uma súbita vontade de chorar, mas não sabia explicar porque aquilo estava acontecendo com ela.

Plínio enquanto isso tinha certeza do que sentia por Isabel e buscava as palavras certas para demonstrar o seu afeto. Era complicado porque isso poderia afetar a sua convivência dentro do apartamento, caso fosse rejeitado e ficasse um clima constrangedor residual. Por fim sentou-se em um banco perto da cozinha e ficou olhando o vazio, refletindo sobre tudo aquilo.

_ Você está bem? _ disse Bebel lhe fazendo um cafuné na cabeça. _ Tá com uma cara estranha...

_ É difícil explicar. Estou a fim de uma garota, mas tenho medo de ser rejeitado.

_ Porque ela faria isso? Você é simpático, atraente. Acho que ela teria muita sorte em ficar contigo.

_ Não acho que ela gosta de mim desse jeito.

_ Você não vai saber até perguntar.

_ Sei não. Acho que vai piorar as coisas.

_ Fecha os olhos.

_ Hã?

_ Vai, fecha os olhos.

Assim que ele fechou os olhos ela o beijou nos lábios. Quando ele os abriu, ela sorriu e disse:

_ Nossa, você é lerdinho mesmo, hein?

Ele olhou confuso e Isabel o beijou de novo. Obviamente a mulher já tinha percebido as intenções do rapaz há muito tempo e sentiu que se ele não tomasse uma atitude, ela teria que se adiantar, nem que fosse para encerrar aquela inconstância.

De repente Maurinho apareceu na festa, todos ficaram apreensivos, menos Leila que continuava inerte afogando as suas mágoas. Sócrates se adiantou e foi abordar o intruso:

_ Veja lá o que você vai aprontar. Nossas carreiras estão à prova hoje. Não ponha tudo a perder.

_ Não se preocupe com isso, já desencanei.

Estava bêbado de cachaça e desmaiou em cima de uma das mesas. Um dos convidados que era mais idoso, não aguentou tanta emoção depois dos cachorros e acabou enfartando. A ambulância levou o velhinho e de quebra pegou também a passeadora de cachorros, que estava precisando urgente de uma injeção de glicose. Sócrates aproveitou e a acompanhou nesse trajeto:



_ O que aconteceu com você hoje?  Estava tão focada e de repente começou a encher a cara, não entendi nada.

_ Porque você não aproveitou e ficou com a sua amiguinha?

_ Que amiguinha? Do que você está falando?

_ A garota da festa que estava se oferecendo para você. Não percebeu?

_ A madrinha? A gente tava conversando, qual o problema?

O diálogo terminou ali porque a moça desmaiou. Quando ela despertou não se lembrava de mais nada, mas passou a sentir algo diferente pelo fotógrafo, que ela precisava processar antes de seguir em frente com aquilo. Maurinho ganhou uma pequena fortuna, mas antes de pensar em fazer uma festa refletiram sobre o enfarto do velhinho e decidiram abrir uma caderneta de poupança, porque afinal de contas a vida é breve, mas nem por isso precisamos viver no limite o tempo todo. A melhor forma de riqueza é aquela onde você possui dinheiro o bastante para não precisar se preocupar com ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O olho de Padax

  A ilha de Thalassa ficava no mar de Aquilonis, localizado entre a parte continental chamada Agamemnonia ao norte e Elíthera ao sul. A les...