Conta um conto

quinta-feira, 21 de março de 2024

Dois apartamentos e um zelador

     Isidoro e Otília se mudaram ainda jovens para o Edifício Solares. O ano era 1964 e eles tinham 10 anos cada um. A menina morava no apartamento de cima, o rapaz logo abaixo dela. Haviam poucas crianças no prédio, que era ocupado em sua maioria por artistas boêmios que tinham ideias subversivas, sendo posteriormente perseguidos, torturados e mortos pelos militares. O único companheiro delas era Atanagildo Pereira, filho do zelador. O trio cresceu junto e ficou bastante íntimo.

Passaram se muitos anos e agora eles eram jovens, na faixa dos vinte anos. O rapaz começou a nutrir sentimentos pela sua vizinha, mas tinha medo de criar uma situação desconfortável e perder a amizade da moça. Sua timidez também impedia que ele se relacionasse com outras garotas na escola, fazendo com que ele se tornasse cada vez mais introvertido. Além disso, só tinha olhos para Otília, com quem tinha uma amizade muito forte. Não estudavam na mesma escola, por divergências religiosas por parte dos pais, já que uma instituição era metodista e a outra era católica. Compensavam essa ausência conversando entre si sempre que podiam.



Certo dia a garota lhe confessou que estava interessada em um rapaz que estudava com ela. Ele ficou normal diante dela, embora estivesse todo quebrado por dentro. Obviamente ele não lidou bem com aquela situação e começou a ficar cada vez mais recluso, sentindo-se rejeitado. Ela não entendeu nada, ficou triste e terminou sendo consolada por Atanagildo, com quem acabou namorando.

Isidoro ficou bastante chateado com aquilo tudo e cortou relações com os dois, durante muito tempo. Era uma raiva que ele não conseguia explicar, um orgulho ferido que não tinha a menor intenção de cicatrizar, pelo menos não tão cedo. Enfiou a cabeça nos estudos e entrou para a faculdade de engenharia, sem deixar de acompanhar de longe o progresso de Otília, que sempre esteve em seus pensamentos. Ela resolveu fazer Letras, queria muito ser professora como sua mãe.

Ele se envolveu com várias mulheres, mas nunca se casou, pois nenhuma se comparava ao seu primeiro e único amor. O relacionamento físico ia bem, mas não suportava a convivência diária. Não sentia nada em comum, se sentia avulso, deslocado, por mais que tentasse. Nunca conseguiu superar a ausência da moça que se casou, indo morar longe dele e do seu primeiro ex, que agora assumia a vaga do pai como faxineiro do prédio.

Atanagildo, que nunca foi muito de estudar, se resignou a seguir o caminho de seu antecessor, por puro comodismo. Não tinha grandes aspirações, ali ele recebia um salário fixo, dormia em um anexo no térreo e ainda tinha facilidade de contato com as diaristas. Estava feito.


O tempo foi passando e Isidoro acabou ficando com o apartamento, depois que os seus pais faleceram. O zelador então se reaproximou de seu amigo nesse momento fúnebre.

_Você sempre tem essa tática, né? Ganhar o coração das pessoas quando elas estão tristes, vulneráveis. _ disse o inquilino enquanto era abraçado.

_ Simplesmente acho que isso não se nega a ninguém. E eu estou sempre pronto a oferecer.

_ Isso é muito humano da sua parte. Por isso não dá para ficar com raiva de você.

_É, mas por conta desse seu faniquito, acabou perdendo alguém que significava bastante para você.

_ Ela e você também, né?

_ Você nunca me perdeu. Eu estava só esperando você ficar pronto para voltar.

_ Não é à toa que ela preferiu ficar com você do que comigo.

_ Você gostava dela?

_ Não sabia? Achei que estava implícito.

_ Cara, se você não falar as coisas, ninguém vai adivinhar. Você precisa parar de achar que as pessoas leem a sua mente.

Nesse momento Isidoro percebeu o quanto esteve equivocado por todos aqueles anos. Já estava velho e não tinha se declarado para a única mulher que ele tinha realmente amado em toda a sua vida. Sentou se na poltrona que ficava na sala, perto da janela e ficou observando aquele ambiente vazio por várias horas, até a escuridão tomar conta de tudo.

Decidiu adotar um cachorro, um basset hound chamado Salim para ter uma companhia quando não estivesse lendo livros ou vendo filmes e séries na televisão. Aceitou seu estilo de vida solitário, que acabou se tornando estranhamente confortável para ele. Fazia também algumas atividades com Atanagildo, que aderiu ao estilo de vida sem relacionamento fixo, onde segundo ele havia mais liberdade.


Estava indo tudo seguindo uma relativa paz quando um rosto familiar retornou, após a morte do marido. Otília e sua gata angorá Matilde voltaram para o apartamento que era dela e estava vazio há bastante tempo, desde que os pais dela se separaram. Não quiseram vender porque haviam decidido que era herança da filha e ela faria o que quisesse com ele. A moça pensou várias vezes em se desfazer do imóvel, mas sempre arrumava uma desculpa para ir adiando. Agora estava de volta, mais amarga e cínica, sem a mínima vontade de socializar.

Isidoro sabia que teria um grande caminho a percorrer para reconquistar o carinho de alguém que ele havia deliberadamente abandonado sem motivo aparente. Inicialmente pensou em mandar seus pêsames através do faxineiro, mas depois decidiu ir pessoalmente. Tocou a campainha e ela não atendeu. Talvez não estivesse em casa, embora Atanagildo tivesse garantido que a viúva não saiu. Decidido a não perder a viagem ele gritou no corredor:

_ Sinto muito pela morte do seu marido! E sinto mais ainda por ter me afastado de você, tá bom? Você é a única mulher que eu amei na vida e eu sinto demais a sua falta!

O silêncio permaneceu no local. Alguns curiosos observaram a cena pelo olho mágico, mas não tiveram coragem de sair e lhe dar um abraço após aquele momento claramente constrangedor. O velho estava triste, mas aliviado pois não sabia como ela reagiria. Poderia lhe bater ou lhe dar um beijo. Foi preparado para as duas reações e não teve nenhuma. Foi ruim, mas sinceramente não tinha certeza se sobreviveria ao tapa. Naquele dia ele foi para casa com um sentimento agridoce em seu coração.


Nos dias seguintes começou a deixar pequeninos vasos de flores na porta, na expectativa de pelo menos amolecer um pouquinho o coração dela e ao mesmo tempo se redimir dos erros cometidos no passado. Otília por sua vez ficou com raiva e jogou todos aqueles vasos no lixo, embora a sua vontade fosse de atirar todos eles na porta do seu vizinho de baixo. Não precisava de consolo, carinho ou bajulação. Só queria ser deixada em paz com sua gata sem ser importunada até o fim dos seus dias.

Isidoro se sentiu pessoalmente responsável por ela ter se transformado numa pessoa tão fechada, pois o seu afastamento fez com que ela perdesse alguém que poderia estar lhe fazendo companhia agora, ajudando nesse momento difícil. Sua atitude não foi só imatura. Foi covarde e egoísta também. Ele demorou a compreender como aquele ato tinha se mostrado tão nocivo a longo prazo. Ela precisava de desculpas genuínas, não de simples gestos de carinho.

Otília precisava saber que ele tinha noção do tamanho do estrago que o seu afastamento havia causado em sua vida. E assim ele fez. Sentou-se numa mesa, pegou lápis, papel e derramou todos os seus sentimentos numa carta que seria sua derradeira alternativa para derrubar aquela muralha entre eles que Isidoro inadvertidamente havia construído. Pediu ao zelador para entregar à sua vizinha em mãos e se certificar de que ela havia lido. Muitos dias se passaram. Ele estava a ponto de perder as esperanças quando de repente a campainha tocou. Quando abriu a porta tomou um soco no estômago de Otacília que chorando lhe disse:

_ Porque você demorou tanto tempo para fazer isso?

_ Você precisa me dar um desconto. Eu sou homem, poxa. _ disse o velho gemendo com a mão na barriga.

Ela lhe deu um beijo na testa e perguntou:

_ Não vai me convidar para entrar?

_ Depende, você vai me bater mais?

_ Só se você merecer. _ respondeu ela sorrindo.

Finalmente depois de tantos anos eles se abraçaram.

_ Você não faz ideia da falta que fez em minha vida.

_ Faço minhas as suas palavras.


A partir daquele momento eles nunca mais se separaram. Ficavam namorando e alternando os apartamentos, pois nenhum dos dois quis se desfazer do próprio imóvel. Além disso, sentiam mais liberdade para conviver com as suas próprias manias e excentricidades sem o risco de gerar algum tipo de desavenças, afinal de contas a última coisa que eles queriam naquela altura da vida era brigar e recomeçar tudo de novo.

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