Conta um conto

domingo, 28 de janeiro de 2024

Eurico e o prédio do Amanhã

 




Eurico Peixoto sempre foi um escritor cobiçado pelas editoras. Seus livros de auto-ajuda esgotavam das prateleiras assim que chegavam. Dava entrevistas em programas de televisão e revistas, além de ser casado com uma mulher belíssima. Parecia que nada lhe faltava. E num estalo de dedos ele perdeu tudo. Seu mundo caiu após descobrir o adultério da esposa. Desabou em uma depressão que fez as vendas dos seus livros despencarem, pois que propriedade ele tinha para ajudar alguém. Virou motivo de chacota porque todo mundo lhe dizia que era só ele ler os próprios livros que tudo iria ficar bem.

Saiu de casa um dia e começou a caminhar, despreocupado com o seu destino. Só queria andar para ter a ilusão de deixar os seus problemas para trás. Não se importava com mais nada. Sua vida tinha perdido o sentido. Quando finalmente se cansou, sentou-se no meio fio e ficou olhando o horizonte, buscando uma resposta. Tinha perdido completamente a noção do tempo. Tinha muita vontade de chorar, mas nenhuma lágrima brotava. De repente ouviu uma voz atrás dele:

_ Será que o senhor pode me ajudar? Essas compras estão pesadas.

Ele olhou para trás e viu uma linda moça, com seus trinta e poucos anos, cheia de sacolas. Não era difícil perceber que ela era cega, mas ele não a tratou diferente por causa disso. Sentiu que precisava de uma distração de sua vida e a acompanhou, levando a maior parte do peso até a casa dela, um apartamento no prédio que estava atrás de onde ele estava sentado. A ausência de elevadores fazia obrigatório o uso da escada e ela morava no terceiro andar. Quando chegaram ela ofereceu um café e ele aceitou. Ela se chamava Olívia, e sem a menor cerimônia foi logo falando:

_ O senhor parece triste, posso ajudar em alguma coisa?

_ Realmente não estou bem, mas não quero despejar meus problemas em cima de você, especialmente pelo fato que a gente acabou de se conhecer.

_ Eu sou muito solitária, não recebo muitas pessoas, gostaria de ouvir a sua história. Por favor.

_ Eu sou o escritor Eurico Peixoto, talvez você me conheça. Eu apareci muito na televisão e redes sociais, podcasts etc.

_ Desculpe, não conheço, disse ela sem graça. Eu não curto mídia nem redes sociais. Eu gosto de crochê e natureza. Tenho minhas plantinhas e gosto de ouvir música.

_ Tudo bem, eu que peço desculpas pela arrogância. Esse anonimato até me faz bem, na verdade. Eu sinto que perdi o meu mundo todo de uma vez só, estou sem rumo, não sei o que fazer. Me desculpe, você deve enfrentar mais problemas do que eu, por causa….

_ Por que eu sou cega? Você acha que isso me limita?

_Não sei, imagino que sim. Eu não tive a intenção de ofender._ afirmou o escritor sem graça.

_ Não tem problema, já estou bem resolvida quanto a isso. E não, nada me impede de fazer o que quero. É questão de entender o caminho que você quer trilhar. Respirar fundo e se jogar no que você acredita ser capaz de fazer.

Eurico sorriu e agradeceu o carinho, mas aquele conselho era bastante parecido com algo que provavelmente ele mesmo já tinha escrito em algum de seus livros. Necessitava de empirismo, algo que realmente fizesse o seu corpo reverberar a epifania de que ele tanto precisava.

O carinho de Olívia não passou despercebido. Ele sentiu a energia positiva que emanava da moça e percebeu que ali era um bom lugar para ficar até conseguir se reerguer. Pela primeira vez em muito tempo tinha sentido um fiozinho de luz penetrando pelas frestas de sua alma partida. Alugou um apartamento naquele prédio e ali ficou, esperando por algum sinal que confirmasse a sua expectativa.

Os dias foram passando e ele passou a ter uma nova perspectiva das coisas ao seu redor, Compreendeu que estava enxergando tudo erado toda a sua vida e largou a depressão, mas continuava desanimado, não via sentido em voltar a escrever, estava desanimado. A esperança em retomar a sua carreira tinha lhe abandonado. Deitou-se na cama e olhando fixo para o teto, começou a se lembrar de como tinha começado, com a verdadeira intenção de ajudar várias pessoas desamparadas, antes de se tornar um pastiche de si mesmo. Sentia-se agora um impostor, uma fraude que ansiava por retomar sua credibilidade. Conversando com sua nova amiga Olívia, foi convencido por ela a começar um diário, relatando nele todas as suas percepções e sentimentos, a medida que os mesmos iam aflorando em seu coração.

A princípio ele achou que seria um exercício inútil. Era muito mais fácil conversar com sua amiga do que simplesmente escrever num caderno. Provavelmente sua mão não conseguiria acompanhar o fluxo dos seus pensame


ntos. Isso se ele tivesse o que escrever. Passava a maior parte do tempo sentado em uma cadeira de praia no pátio do prédio, olhando as pessoas com pressa saindo e voltando para as suas casas.

Inspirado mais uma vez por Olívia ele teve a idéia de fechar os olhos e receber as informações do mundo usando os seus outros sentidos. Gradativamente começou a perceber as nuances de um universo que ele pouco conhecia e se deu conta de tanta coisa que inconscientemente subestimava.

Estava Eurico em seu infinito particular, meditando sobre a vastidão do mundo quando foi abordado pelo servente do prédio, que lhe ofereceu um copo de café e um punhado de biscoitos. Depois de educadamente recusar várias vezes, acabou aceitando para não fazer desfeita. Aquele ato aleatório de gentileza o comoveu profundamente. Começou a refletir sobre como tinha sido egoísta toda a sua vida e escrever livros de auto-ajuda mascarava esse egoísmo porque lhe dava uma falsa impressão de altruísmo. Precisava germinar algo genuíno dentro de si e a base estava ali. Doou parte de suas roupas e foi trabalhar como voluntário em restaurantes populares. Nesse contexto acabou intensificando sua relação com Olívia e começaram a namorar. Agora sentia que estava realmente colaborando com a sociedade e o desejo de fazer mais prevalecia, mas ainda assim se sentia pequeno, despreparado, vazio, avulso.

Certa noite estava deitado em sua cama ao lado de Olívia pensando sobre tudo isso e uma lágrima solitária brotou de seu olho direito. Nem ele sabia explicar como isso tinha acontecido. Ela, em silêncio o beijou na testa e o abraçou. Ele sorriu porque ela não tinha visto a lágrima escorrer, ela provavelmente sentiu que ele estava angustiado pelo som de sua respiração. Nesse momento ele entendeu o afastamento de sua esposa. Foi deixando de dar carinho e receber em troca. Não se sabe quem começou, mas foi isso que aconteceu. Precisava se perdoar sobre aquilo e beijou sua amante, abraçando-a forte. Nesse momento ela percebeu suas lágrimas e perguntou:

_ Porque você estava chorando?

_ Não sei dizer, simplesmente aconteceu. Mas tenho muito a te agradecer.

_ Sério? O que eu fiz?

_ Você me fez enxergar o quanto eu era pequeno. Me desculpe o trocadilho.

_ Você só estava olhando na direção errada.

Essa injeção de afeto em seu peito foi um sopro perfumado de vida entrando pelas suas narinas. Sua situação era extremamente clichê, mas não se importava, porque isso o tornava humano, verdadeiro, visceral.

Fez questão de conhecer todos os moradores do prédio e os seus pets, sentindo uma necessidade enorme de chamar todos pelo nome a roubar abraços sempre que surgia uma oportunidade. Muitos o repeliam, achavam que ele era maluco ou drogado, mas depois percebiam que ele só estava sendo carinhoso. Essa troca de sentimentos lhe deu fôlego para escrever um novo livro, intitulado “A vida como ela deveria ser- um manual de conselhos definitivos”.



Não se importava com quantas cópias iria vender. Na verdade queria poder distribuir de graça, mas precisava ganhar um sustento, sabia que o estado de utopia com que sonhava tinha esse nome exatamente por isso, mas a humanidade poderia melhorar um pouco se lesse as suas palavras com atenção, pelo menos assim ele pensava. Tinha esperança em mudar pelo menos alguns corações mais sensíveis e perdidos em meio à tempestade da vida.

Se trancou num quarto e passou dias escrevendo sem parar, estava ávido em compartilhar a sua experiência com o mundo. Escreveu páginas e páginas, empolgado com a sua descoberta, algo tão simples, puro e tão desperdiçado.

Depois de terminar ficou horas com o seu agente no telefone, tentando convencê-lo a pelo menos ler o texto. Há muito tempo não sentia tanta convicção em suas palavras. Precisava se redimir com os seus leitores e consigo mesmo. Precisava disso mais do que nunca.

O que ele não percebeu foi que enquanto alguns o chamaram de hipócrita, muitos o defenderam, dizendo que a depressão na verdade o tornava mais humano, mais relacionável e sentiam que podiam se identificar com isso.

Dessa forma o novo livro de Eurico acabou sendo publicado e em suas entrevistas ele contou tudo o que havia acontecido com ele. A opinião a respeito dele ficou dividida, mas não se importava com isso. Apesar de todos os percalços, sentiu que estava novamente na trilha certa para, pelo menos, tentar ajudar as pessoas. Pela primeira vez estava tentando ser uma pessoa melhor, para poder falar com propriedade e saindo do modelo copia e cola no qual estava involuntariamente preso. Além disso, seu engajamento pelas causas sociais não mais se restringiria aos livros, mas em participações em mutirões para construção de casas populares e ajuda em restaurantes populares. Não faria isso por promoção própria ou falsa demagogia. Ele simplesmente tinha aprendido que solidariedade é a melhor forma de dar e receber carinho. A expressão de gratidão no rosto de alguém que foi ajudado é o suficiente para iluminar o dia de uma pessoa que sabe que fez a diferença na vida de uma pessoa. Não é muito a nível global, mas é um belo e significativo começo. Essa esperança tornou-se a sua meta e ela o acompanharia agora todos os dias, renovando as suas energias.



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