Conta um conto

sexta-feira, 8 de março de 2024

A peleja do padre Natanael contra o fazendeiro usurpador

Abandonado na porta de um mosteiro quando bebê, foi criado por frades e batizado com nome bíblico, que significa presente de Deus. Cresceu com um apetite insaciável por livros e conhecimento e abraçando o desapego aos bens materiais de maneira bastante espontânea. Sentia que todos deveriam ter direito a todas as coisas e nunca compreendeu porque uns tinham mais que os outros. Sempre bastante solidário e paciente, talvez o seu único “desvio” seria gostar um pouco demais de bebidas fermentadas alcóolicas como vinho e cerveja.



Quando atingiu a fase adulta ele sentiu a necessidade de pregar a palavra de Deus em vilarejos distantes, interagindo com outras pessoas e estilos de vida para alimentar a sua essência humanista.

Galopando em seu burrinho acabou chegando à cidade chamada Poço Verde, cuja população bastante humilde o recebeu de braços abertos, especialmente porque há muito tempo não tinham um padre por aquelas bandas. O último representante do clero tinha misteriosamente desaparecido da noite para o dia.

A última pessoa que o tinha visto por aquelas bandas era o Coronel Ponciano Abelha, um fazendeiro com uma vasta extensão de terras que mandava em quase tudo por ali. Escolhia e mandava nos prefeitos que tomavam posse, fazendo tudo ao seu bel prazer. Não curtia carreira política porque era muita dor de cabeça. A articulação pelos bastidores era bem mais confortável e menos arriscada juridicamente. Não tinha o hábito de ser contrariado porque todos sabiam o destino de quem tinha cometido essa leviandade.


Natanael compreendeu o que havia acontecido ali, mas procurei se manter indiferente a esses joguetes políticos, afinal de contas Deus é maior. Começou fazendo a faxina na linda igrejinha de pedra que ficava no alto de um morro tirando o pó dos móveis e varrendo o chão.

Não demorou muito para a notícia chegar nos ouvidos do fazendeiro, que logo ficou curioso para saber se teria que tomar alguma providência, caso esse padre fosse “problemático” como o anterior.

Chegou na paróquia com um sorriso no rosto e fazendo sinal da cruz, afirmando que a chegada do vigário tinha sido essencial para levantar os ânimos da população tão sofrida e necessitada de esperança.

_ Deus sabe o que faz.

_ Não entendi direito o que o padre quis dizer com isso.

_ Reflita sobre isso no retorno para a sua casa. A resposta virá.

O coronel saiu meio desconcertado, sem saber direito o que pensar. De qualquer forma tinha que se livrar daquele obstáculo antes que ele se tornasse uma figura relevante naquela região. Era o seu modus operandi. Chegou em sua residência e já mandou chamar Joselino Bassamão, seu braço direito e líder dos seus capangas, que tinha o apelido carinhoso de “bafo de cobra”.



_ Faça o serviço rápido porque eu não quero mais um padreco me dando nos nervos.

_ Considere feito, patrão.

O jagunço foi escondido à noite na igreja para matar Natanael enquanto dormia. Entrou devagar e atirou rapidamente na cama, sem ver onde estava mirando, pois estava escuro e apesar de sua insensibilidade era bastante supersticioso e achava que matar padre dava mau agouro. Depois dos tiros, caminhou lentamente até a cama, para verificar se estava tudo certo, pois não queria ver o seu chefe enfurecido.

Foi então que o sino da igreja tocou repentinamente, assustando o bandido que saiu correndo e pedindo perdão a Deus, mesmo não acreditando no mesmo. Na verdade, o padre tinha se levantado para tomar água e cobriu a cama colocando a coberta por cima do travesseiro antes de sair, um velho hábito que tinha adquirido no mosteiro. Assim que ouviu os disparos, tocou o sino para espantar o invasor, como se fosse uma espécie de alarme.



No dia seguinte Natanael teve uma ideia e resolveu fingir a própria morte para verificar uma suspeita de quem tinha ido matá-lo. Para isso pediu ao funcionário da padaria, que tinha ido até a paróquia levar o seu café da manhã, para ajudá-lo na farsa. O jovem avisou aos seus empregadores que o padre tinha sido assassinado e o velório seria na igreja durante o dia todo. A cidade toda compareceu para se despedir daquele santo homem que mal tinha chegado e já tinha partido. Durante a cerimônia alguém acabou dizendo:

_ Oh Deus, mande um sinal que o senhor não nos abandonou!

Nesse momento Natanael percebeu que era o momento ideal para se levantar do esquife, como se tivesse milagrosamente ressuscitado. Todos se assustaram bastante, algumas senhoras desmaiaram e Ponciano ficou perplexo, com bastante medo. Joselino não parava de tremer. Caiu de joelhos e começou a gritar, chorando:

_ Deus me perdoe! Tende piedade.

O padre foi andando devagar em direção ao Coronel e seu capanga, com todos os olhos voltados para ele. Chegou em direção aos dois e disse:

_ Perdoa-os Pai, eles não sabiam o que estavam fazendo.

Bafo de cobra chorava muito, arrependido do que havia feito e realmente acreditava que tinha presenciado um evento sobrenatural. O fazendeiro estava assustado, mas continuava cético e não acreditou que ele tinha realmente ressuscitado. Percebeu aquilo tudo como uma jogada estratégica do padre e não se converteu.

Mais tarde Natanael pediu perdão a Deus pela farsa e rezou bastante, mas por outro lado pensou que isso ajudaria a população a não perder a fé em Deus e converteu até um pecador então aquele tipo de enganação não tinha sido de todo ruim. Foi um erro que trouxe bons resultados: a população local passou a frequentar mais a igreja, sendo solidários uns com os outros sob orientação do padre, que agora tinha ganhado um status de suma importância na comunidade.

Ponciano, por sua vez manteve seu projeto para o desvio e retenção da água do rio Saruê que era utilizado por grande parte da população para irrigar plantações, lavar roupas, pescaria, até mesmo para se banhar. Nada disso ele levou em conta quando pensou no seu açude, represando assim para usar a água a seu favor, seja trocando por dinheiro ou influência.

O padre aproveitou para se posicionar como representante dos injustiçados, se colocando contra o opressor egoísta e interesseiro. Pela primeira vez o povo tinha alguém que estava lutando ao lado deles, dando uma legítima chance de mudança. Assumiu de vez o lado militante e se empenhou em elevar os ânimos da população para assumirem sua cidadania e lutarem por seus direitos.

O prefeito pela primeira vez ficou indeciso porque sabia que qualquer decisão que tomasse iria lhe trazer alguma forma de prejuízo. O coronel desesperado fez o impensável: foi armado com sua espingarda na igreja, enquanto o padre estava fazendo a sua homilia e lhe deu um tiro no peito, na frente de todo mundo.

_ Vamos ver se você ressuscita novamente, padreco!

Momentos depois o céu ficou nublado e começou a chover torrencialmente, enchendo o rio e destruindo a barragem, causando um desabamento que avançou com força em direção à cidade. O coronel tentou, mas não conseguiu se desvencilhar da multidão enfurecida, empenhada em linchar o mesmo até a sua morte. Porém, um dos cidadãos disse:

_ Gente, não é assim que o padre Natanael iria querer. Devemos perdoar, não importa o quão errado ele esteja errado.

_Concordo em não matar, mas da surra ele não escapa! _ respondeu outra pessoa com raiva!

Foi uma chuva de socos e pontapés. Os jagunços que tinham ido com ele pensaram em interferir, mas ficaram com medo de apanhar também porque era muita gente e eles sabiam que não iam dar conta. Por fim deram uns tiros para o alto e o pessoal dispersou, abandonando a carcaça ensanguentada do fazendeiro. Botaram ele numa carroça e o levaram até o posto de saúde mais próximo. Passou a noite naquele local, com vários ossos quebrados e cheio de ataduras, quase irreconhecível.

Enquanto tudo isso acontecia, os cidadãos estavam desesperados com o desabamento que vinha varrendo tudo. A população que estava na rua voltou para a igreja após o linchamento e se trancaram lá com o padre ferido que ainda não tinha morrido, mas sangrava muito. Com seu último fôlego ele disse:

_ Vamos pedir a Deus que nos proteja. Rezem com muita fé, meus filhos.

O pessoal deu as mãos, fechou os olhos e começou a orar. Em um certo momento o barulho dos destroços ficou mais alto e eles tiveram bastante medo, mas seguiram firmes rezando. Todos que ficaram ali sobreviveram à catástrofe e chamaram aquele de “o segundo milagre de São Natanael”, já que o primeiro que eles presenciaram foi a suposta ressureição do mesmo.

Infelizmente o pároco não sobreviveu ao ferimento e foi carregado pela multidão até a seu esquife, onde foi enterrado com muito choro e homenagens. Dizem que o local de seu descanso final é o espaço mais florido da cidade, destino de muitas romarias, gente que vem de longe para pagar promessa. Ele nunca foi oficialmente canonizado, mas as pessoas não ligam para isso, a sua fé é maior.

O fazendeiro também sobreviveu ao desastre, mas no caminho para casa seus guarda-costas foram repentinamente alvejados por um atirador oculto. Ele confuso procurou saber quem tinha feito aquilo até que finalmente avistou Bafo de Cobra se aproximando lentamente de sua carroça. Não conseguiu nem dizer alguma coisa em sua defesa porque sentia muita dor. A última coisa que ele ouviu antes de morrer com um tiro na cabeça foi:

_ Ele me tirou do inferno, mas se for para te matar por causa do que você fez a ele, volto com gosto!

Após a reconstrução da cidade, o prefeito mandou erguer uma enorme estátua em homenagem ao Padre e sua história está enraizada na tradição oral do imaginário popular, tema de muitos versos e cantigas. A força de sua militância social sobreviveu ao seu falecimento hoje atua educando e motivando o povo daquela região a se impor, sem tolerar mais abusos. Esse foi o seu verdadeiro e mais poderoso milagre.

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