Conta um conto

sábado, 9 de março de 2024

O palhaço Torresmo e a filha do fazendeiro



Filho de um casal de trapezistas, Alberto nasceu e cresceu no circo Moscadus com um problema na tireoide que não o deixava emagrecer. Obviamente ninguém sabia explicar esse problema, então só diziam que a sua digestão era bastante lenta. Sua fisionomia lhe rendeu o apelido de Torresmo e o emprego de palhaço, pois todos se divertiam bastante fazendo piadas com o seu peso. Seus pais optavam por não interferir, pois acreditavam que ele precisava superar esse problema sozinho. Essa importunação acontecia com tanta frequência que ele aprendeu a não se importar, embora gerasse danos severos à sua autoestima.


Seu único amigo era o parceiro de palco Sineta, que infelizmente era obrigado pelo dono do espetáculo a fazer várias piadas de gordo, pois rendiam muitos risos para a plateia. Alberto levava isso numa boa porque sabia que ele não tinha a intenção de ofender, era apenas uma encenação.

Certa vez, durante a apresentação de um show, uma garota interrompeu dizendo que aquilo não era engraçado, apenas pura humilhação. Seu nome era Emília, filha do fazendeiro local.

_ Você deve ter outras piadas, não é? Mostra aí. _ disse ela para o jovem gordinho que se sentiu ouvido pela primeira vez.

O palhaço obviamente tinha todo um repertório alternativo que fez a plateia rir bastante, inclusive a moça. Depois da apresentação ela o procurou, dizendo que queria conhece-lo melhor. Torresmo achou aquilo tudo muito estranho porque se achava repulsivo demais para despertar interesse em alguém. Já tinha passado por momentos onde garotas fingiam querer namorar com ele somente para depois rirem às suas custas.

Educadamente recusou o convite e foi para o seu trailer, dando por encerrado aquele assunto enquanto meditava sobre a sua própria condição. Como ela esperava que ele acreditasse que uma moça daquela estirpe, linda, educada e rica iria querer conversar com um bufão gordo e pobre? Seria forçar um pouco a barra.

No dia seguinte, estava ele tomando café com pão e conversando com seu amigo quando ela apareceu de novo, querendo conversar com ele.

_ Esse é o pior tipo de mulher. _ disse ele para Sineta. _ Finge dar esperanças para depois tirar.

_ Talvez ela realmente goste de você.

_ Deixe as suas piadas para o picadeiro. Em que mundo você vê isso possível? Nós dois fazendo coisas juntos? Eu chego a ficar ofendido, sério mesmo.

Ela estava se aproximando e quando viu o rapaz se levantar e partir, sem ao menos cumprimenta-la, ficou triste. Sineta se virou para ela e disse:

_ Por favor, não se ofenda. Ele simplesmente não acredita em você porque já foi magoado demais. Ele carrega muita dor e ressentimento dentro do peito. Ainda assim ele põe a maquiagem e faz todo mundo rir, noite após noite. É um ofício de muita entrega e desapego da própria personalidade. Francamente acredito que ele está emocionalmente esgotado, no fim das próprias forças.

_ É muito deprimente saber disso porque ontem eu enxerguei nele um potencial que ele talvez nem faça ideia de possuir. Diga a ele que não irei desistir até conseguir falar com ele antes de vocês partirem.

_ Boa sorte.

Torresmo seguiu evitando a moça enquanto enchia a cara e se relacionava com prostitutas. Esse era o seu normal. Não estava acostumando com alguém lhe valorizando. Isso era bizarro e provisório para ele. Logo estariam na estrada novamente, com as chacotas e perturbações lhe perseguindo.

O circo partiu e tudo voltou a ser o que era antes, como ele previu.



Anos depois eles retornaram, ela agora estava de casamento arranjado com um médico, mas ainda pensava em Alberto. No começo ela estava somente intrigada, mas depois que ouviu a sua história através de Sineta, ela começou a sentir um estranho interesse por ele. Era algo que Emília não conseguia explicar e queria tirar à limpo com ele. Apesar disso, Torresmo se tornou ainda mais azedo por dentro, perdendo a pouca vontade de socializar que tinha no passado. As piadas sobre o seu peso ficaram desgastadas e ele tinha passado a usar cada vez o mais o seu material, que todos adoravam. A moça assistiu e achou ainda mais engraçado do que ela se lembrava.

Estava retirando a maquiagem no camarim quando ela apareceu sorrindo:

_ Será que finalmente vamos conseguir conversar hoje?

_ Não creio. _ respondeu ele de forma bastante seca.

_ Porquê?

_ Não acho que temos o que conversar, só isso.

_ Qual é o seu problema comigo? Eu só te tratei bem desde o início e você só me rejeitou, sem motivo nenhum.

_ Rejeição é uma palavra muito forte. Eu simplesmente nunca entendi o que você quer conversar tanto comigo. Eu não tenho nada a te oferecer. Nós vivemos em realidades completamente diferentes. Você quer saciar algum tipo de curiosidade mórbida? Quer provar para você mesma que é uma pessoa boa e decente vindo conversar com o pobre palhacinho que sofre humilhação pelos colegas de trabalho?

_ Olha, eu realmente gosto e admiro o seu trabalho. Tudo o que eu queria era conhecer a pessoa por trás da maquiagem. Hoje infelizmente eu tive esse desprazer.

O circo foi embora mais uma vez e as palavras de Emília ficaram ressoando na cabeça do palhaço. Será que ele tinha sido muito insensível com ela? Estaria ele tão quebrado por dentro a ponto de não mais reconhecer uma admiração sincera? Provavelmente sim, mas ele não se importava mais. Já se considerava além de qualquer tipo de reparo emocional ou psicológico. Tinha sido tratado como lixo por tanto tempo que agora tinha se tornado uma mera sombra do que foi um dia, mas nunca deixou de levar risos para o público. Sabia perfeitamente fazer essa distinção entre o espetáculo e a vida real.



Vários anos se passaram até o circo Moscadus retornar. Dessa vez ninguém procurou ninguém, mas eles acabaram se encontrando num bar porque ela tinha descoberto que seu marido a traía com a empregada e se encontrava recém-divorciada. Estava quase alcançando o nível de amargura de Alberto, que estava mais interessado em se redimir por seu comportamento no passado, afinal nada justificava ter tratado ela mal, não importa o quão destruído ele estivesse por dentro. Podiam ser amigos, por que não? Afinal de contas, seu amigo Sineta tinha se casado e ele estava precisando conversar com alguém. Se sentou ao lado da moça e disse, sem olhar para ela:

_ Boa noite, eu gostaria de me desculpar pelo meu comportamento em nosso encontro anterior.

Ela levou um tempo para se lembrar, pois estava um pouco embriagada:

_Nossa, depois de todos esses anos você finalmente está começando a se parecer uma pessoa sociável. Parabéns por essa conquista!

_ Ok, eu mereço esse tipo de resposta. Só quero que você saiba que foi muito difícil para mim sentar aqui e fazer esse tipo de afirmação.

_ Ah, eu imagino que você deve ter feito muita terapia. Você ainda tem um tempinho para melhorar mais sua personalidade antes de morrer.

_ Talvez sim, talvez não. Sei lá. Não tenho pensado nisso. Se eu conseguir me redimir nem que seja um pouco com você eu já fico feliz. Será que a gente pode quebrar o ciclo e não brigar dessa vez?

_ Você que foi insuportável as outras vezes.

_ Eu sei, é o meu mecanismo de defesa. Eu não gosto de mim mesmo e automaticamente me torno detestável para ninguém ter que lidar comigo.

_ Na primeira vez que eu te vi, fiquei realmente com vontade de te conhecer. Achei você bastante carismático.

_ Eu não acreditei, nunca tinha acontecido comigo.

_ Acho que depois do que aconteceu comigo, começo a te entender melhor.

_É mesmo?

_ Me senti insegura pela primeira vez.

_ Imagina então nunca sentir algo além disso. Essa é a minha vida.

_ Pois é, deve ser horrível.

_ Você não faz nem ideia.

A partir dali ficaram amigos e chegaram até mesmo a passar algumas noites românticas juntos. Antes de ir embora, ela pediu que ele ficasse. Alberto ficou confuso, porque não sabia exercer outro ofício. Emília estava vivendo da pensão do ex-marido, mas ele sentiu que precisava contribuir financeiramente, nem que fosse um pouco. Estava tudo de repente indo rápido demais, ele precisava tomar uma decisão antes que o circo fosse embora sem ele. Terminou não abandonando sua família mambembe, deixando para trás uma moça bastante frustrada e chateada.

Depois disso eles não se encontraram mais. Ela assumiu a fazenda do pai e não mais se casou, vivendo em função dos negócios da família e focando sua vida nesse aspecto. O palhaço por sua vez seguiu resignado com a sua própria vida, mas nunca deixando de levar alegria para todos ao seu redor.

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