Conta um conto

terça-feira, 27 de abril de 2021

Resgate em Akalantos

 

1920. Cientistas do mundo inteiro, cansados de ver os seus inventos e pesquisas sendo utilizados para genocídios, ditaduras e guerras, decidem se reunir em segredo e criar uma cidade aérea, onde se refugiariam da humanidade para trabalhar em paz. O dinheiro para a construção veio com a venda de algumas patentes de inventos menores e inofensivos, mas que seriam amplamente utilizados pela humanidade. Através de contatos sigilosos com representantes nos continentes, eles seguiriam com esse comércio para assim poder comprar suprimentos, bem como novas peças e equipamentos, caso precisassem. Assim surgiu Akalantos, o refúgio de todas as mentes independentes e criativas do mundo. Sua localização nunca foi revelada, bem como a sua existência. Mesmo que isso acontecesse, eles estavam sempre se deslocando, o que minimizava qualquer tentativa de abordagem na mesma. 

Estavam tão seguros de sua furtividade que perceberam com surpresa e medo um enorme zepellin se aproximando. Não tinha brasões nem insígnias. Ficaram emparelhados por um tempo em silêncio. Cordas com ganchos foram lançadas nas bordas para facilitar a abordagem de um grupo de homens armados, que facilmente fez a cidade de refém. Os pensadores não conseguiam entender como tinham sido localizados, mas então se lembraram de Valentim Lohan, um cientista francês renegado que não queria abrir mão de seus lucros por uma causa nobre. Sua sede por fama e dinheiro a qualquer custo fez com que ele procurasse o notório mafioso russo Don Casimir, que tinha um plano bem nefasto e lucrativo em mente: criar um exército de autômatos armados e vender os mesmos num leilão internacional.  


Mas nem tudo estava perdido. Antes de ir para o seu cárcere, o Professor Chermont acionou discretamente a sua pulseira, enviando um sinal de alerta para a sua irmã Nicole no continente. Era um plano de contingência que ambos haviam criado, caso acontecesse alguma coisa com algum deles. Bastava um leve toque que acionaria um localizador. Isso já mandaria a mensagem implícita: “Estou em perigo e precisando de ajuda”. 

Era madrugada quando o bracelete da moça começou a emitir uma luz forte e desferir uma leve descarga de choque em seu braço. Acordou assustada e levou um tempo para se dar conta do que tinha acontecido, pois estava com aquele adereço desativado há tanto tempo que tinha se esquecido da sua verdadeira utilidade. Levantou-se rapidamente e fez um café enquanto pensava nas providências que teria que tomar, pois o acordo foi criado em função da vulnerabilidade dela e não dele.  

Não poderia pedir ajuda nem à polícia nem ao exército, pois isso quebraria o acordo de sigilo assinado pelo cientista e teria sérias repercussões para o mesmo, incluindo a expulsão de Akalantos. Precisava de um mercenário ou um detetive particular. Acabou encontrando o segundo com mais facilidade. 

Nicole bateu na porta do Inspetor Enzo logo cedo pela manhã, enquanto ele tomava o seu ritualístico capuccino que lhe dava ânimo para enfrentar o dia, especialmente no inverno quando a articulação do seu joelho doía mais, com um estilhaço de bala alojado que fez com que ele se aposentasse da polícia mais cedo. Seu raciocínio ágil compensava a sua depauperada mobilidade. Era intimista, gostava de silêncio e tinha ojeriza a aglomerações de pessoas. Não era rabugento nem mal educado, embora fosse visto muitas vezes assim.  

Estava prestes a levar a caneca à boca quando foi subitamente interrompido com aquela entrada de supetão da garota, quase derrubando o precioso líquido marrom em sua calça. Nicole era intempestiva e falava com pressa, ocasionalmente se distraindo pelos itens do escritório em função de um leve déficit de atenção que era a sua marca registrada. 

Depois de ouvir toda a história da moça enquanto tomava o capuccino, ele respirou pausadamente e disse: 

_ Mesmo que tudo o que você for verdade, pois parece ser bastante fantasioso... 

_ É verdade. 

_ Ok. No que eu posso te ajudar? Você nem sabe em que tipo de perigo ele está envolvido. Tudo o que você tem é uma pulseira brilhando. 

_ Meu irmão mais velho é excepcional e nunca pede ajuda. Com certeza é alguma coisa grave. 

_ Eu me locomovo muito devagar, porque tomei um tiro no joelho e você quer ir atrás do seu irmão que está em algum lugar do céu. É bizarro, surreal, improvável. 

Nicole percebeu a dimensão do que estava pedindo e sentou-se por um momento para ponderar. Sentiu-se impotente e começou a chorar em silêncio. 

_Eu não tenho mais a quem recorrer_ ela disse_ não posso pedir ajuda à polícia ou exército porque é um acordo secreto e ele pode ser expulso da cidade se eu fizer isso. 

Enzo estendeu um lenço para ela e disse: 

_Vamos ver o que podemos fazer na medida do possível. 

Ela abriu um sorriso e disse: 

_ Vamos na casa do meu irmão. Deve haver alguma coisa que a gente pode usar. 

_ Mas ele não está na tal cidade? 

_ Sim, mas ele tem um sítio aqui nos arredores, onde ele guarda os seus inventos. É tipo um depósito para as coisas dele. Prefere guardar aqui pois não confia completamente nos seus colegas de trabalho. Ele sempre se preservando. É muito desconfiado. Acho que vocês iriam se dar bem. 

_ Porquê? 

_ Ele é caladão, reservado, igual você. 


 

Foram de carro até a localidade, que parecia não ser visitada há muito tempo. Os sinais óbvios eram a imensa quantidade de poeira e teias de aranha que estavam por todo lugar. 

_Será que aqui tem algum balão ou aeroplano? _ perguntou Enzo com um certo tom de ironia_ porque senão vai ser difícil alcançar o seu irmão cientista no céu. 

_ Vamos manter a fé e procurar. Na pior das hipóteses vou ter que confiar em um aviador mesmo. 

_ Porque vc não foi direto em um deles? 

_ Porque o aviador pode contar para os colegas e aí o segredo já era. Eu estou procurando ser a mais discreta possível para ajudar sem causar mais problemas. 

Olharam pela casa e não acharam nada. O inspetor não estava surpreso. Estava achando tudo aquilo uma maluquice sem fim, mas estava comovido pelos esforços e o entusiasmo da garota. Estava pronto para ir embora quando ouviu ela gritar: 

_ O porão! É óbvio! _ disse dando um tapa na própria testa. 

Seu parceiro continuava cada vez mais confuso. Ela foi correndo e abriu um alçapão que ficava embaixo de um tapete, dando acesso a uma longa escada que levava a um aposento no subsolo. Quando lá finalmente chegaram o detetive viu aparelhos que desafiavam o seu raciocínio lógico. 

_ Eu estou surpreso de você confiar em mim para me mostrar essas coisas. _ disse ele. 

_ Eu perguntei sobre você na delegacia antes de procurar. Não sou tão ingênua assim. Falaram tão bem de você que me senti segura o bastante para contar esse segredo. Acho que você vai gostar disso. 

Tirou um pano que cobria um exoesqueleto para as pernas. Enzo ficou olhando boquiaberto. 

_ Vista. Você vai se movimentar melhor. _ disse ela. 

Ele vestiu meio ressabiado, mas ficou impressionado em como lhe serviu bem. Experimentou correr um pouco e ficou surpreso com os resultados. Na verdade, era só a primeira parte de um conjunto que incluía uma outra peça cobrindo o tronco e os braços. 

_ Isso é muito legal, mas como vamos chegar ao céu com isso? 

_ Esse protótipo de exoesqueleto tem propulsores nos pés e nas mãos, que estão ligados a um motor que vai ficar nas suas costas, que por sua vez funciona a base de energia solar fotovoltaica. 

_ Entendi foi nada. 

_ A energia solar fotovoltaica é a energia elétrica produzida a partir do calor e da luz solar. Quanto maior a radiação solar nas placas solares, maior será a quantidade de energia elétrica produzida. 

_ Você sabe mais do que aparenta. 

_ Meu irmão me ensinou algumas coisas antes de ir embora. Eu ficava horas sentada no laboratório dele, tentando entender como aquelas geringonças funcionavam. Era a única forma de me relacionar com ele. 

_Entendo.  

Enzo sentiu vontade de abraçar Nicole, percebendo a tristeza da moça ao pensar no iminente perigo em que seu irmão estava. 

_ Eu preciso treinar voo nessa coisa. _ disse ele tentando quebrar o desconforto do momento. _ E você vai como? 

_ Eu vou abraçada em você, ué. Eu preciso carregar a mochila com as armas que talvez a gente possa precisar. Não se preocupe, o exoesqueleto aguenta levar nós dois. Você não vai precisar fazer força. 

_Ok. _ respondeu o investigador que ficou a princípio embaraçado com aquela situação, mas depois foi se acostumando com a ideia. 

_ Ele não fez esse exoesqueleto para mim, que sou baixinha. Eu iria ficar sacolejando aí dentro. _ disse ela brincando. 


 

Enquanto ele praticava voos em seu novo “traje”, utilizando um capacete da Primeira Guerra que achou no sítio do Professor Chermont, sua companheira de resgate investigava o que podia levar para usar contra uma possível ameaça. Achou uma pistola que disparava bolsas contendo um estranho gel corrosivo e uma estranha rede com fincos retráteis que eram acionados em contato com a pele. Ela ficou assustada ao conhecer esse outro lado de seu irmão, que conseguia pensar em tantas coisas interessantes e ao mesmo tempo nocivas, tridimensionais, curiosas e imprevisíveis como a própria natureza humana. 

Depois de alguns dias de treino, que obviamente incluiu algumas quedas, ele se sentiu seguro o bastante para partir com ela em busca do cientista em perigo. Eles usaram a pulseira de Nicole para chegar até Akalantos, porque o pulso de luz ficava mais intenso à medida em que se aproximavam. Enzo ainda estava processando toda aquela loucura em que havia se metido quando avistou a cidade aérea pela primeira vez e teve dificuldade para acreditar em seus próprios olhos. Estava maravilhado. Estavam voando há tanto tempo que a bateria começou a falhar e eles começaram a perder altitude. Nicole apertou um dispositivo no traje que liberou uma corda com um gancho, que por sua vez se prendeu em uma das beiradas da cidadela e salvou a dupla de uma queda bem feia. A moça escalou correndo na corda enquanto o detetive ficou ainda um tempo suspenso no ar, esperando seus batimentos cardíacos desacelerarem. Apertou o mesmo botão para recolher a corda e subiu sem esforço. Ficaram impressionados com a beleza do lugar, mas isso não durou muito tempo pois logo avistaram os homens armados. 

Nicole ficou com o revólver e deu a rede para Enzo, já que o mesmo ainda tinha o exoesqueleto para se defender e bater nos agressores. Tentaram manter silêncio, mas a armadura de metal chamava muito a atenção e eles não demoraram a ser percebidos. Os mafiosos atiraram, mas ele continuou avançando pois praticamente todas as balas ricocheteavam no metal. Tomou alguns tiros na perna, mas continuou em pé por causa da armação de metal. Os bandidos ficaram assustados e tentavam correr, mas tomavam tabefes metálicos, sendo arremessados para longe. A moça resolver seguir o bracelete para encontrar os cientistas. Estavam sendo protegidos por um capanga que teve a sua arma derretida pela geleia ácida. O mafioso ficou assustado ao ver aquilo e saiu correndo. Ela usou mais uma vez sua pistola e derreteu a fechadura da sala onde os cientistas estavam trancados. Estava abraçando finalmente seu irmão quando ouviu Enzo gritando e pedindo ajuda. Don Casimir tinha pescado o investigador usando um guindaste de imã enquanto Valentim Lohan usava uma metralhadora para impedir que eles se aproximassem. Nicole botou a arma no chão e disse: 

_ É assim que você pesca? Eu prefiro usar uma rede. É muito mais eficiente! 

Todos ficaram confusos, com exceção de Enzo, que se lembrou do dispositivo que estava carregando. Abriu a mochila e jogou a mesma no cientista francês. As pequeninas garras se grudaram na sua cabeça e ele largou a metralhadora, urrando de dor. Um dos cientistas pegou a arma de fogo e Nicole pegou de volta a sua arma de gel. Juntos, foram todos marchando até o mafioso russo que saltou do guindaste e começou a correr até o dirigível. Estava perdido, seus soldados foram derrubados pelos braços metálicos de Enzo e tiveram as suas armas derretidas por aquela geleca estranha. 

Estava prestes a fugir quando a moça teve a ideia de subir na máquina e usar a mesma para arremessar o seu amigo em cima do fugitivo, que acabou morrendo em decorrência desse evento. Ela foi correndo sorridente em direção a ele, que estava ensopado de sangue e nem um pouco feliz: 

_ Nunca mais faça isso de novo, sua doida! 

_ Nós fazemos uma boa dupla, pode admitir! 

_ Só quando você não está colocando a minha vida em risco, o que é quase sempre! 

_Ah! Você sabe que é tudo calculado por mim! 

_ Isso é o que me dá mais medo! 

Por fim os dois sorriram sabendo que aquela loucura tinha chegado ao final. Por enquanto. Valentim foi encarcerado na cidade enquanto a dupla foi convidada a ficar na cidade, trabalhando como força tarefa de segurança. Enzo ficou ainda um tempo olhando o infinito e pensando em como aquela bagunça toda terminou transformando a sua vida de uma maneira que ele nunca poderia imaginar.

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