Edgar terminou a sua mudança numa tarde de sábado. O lugar era pequeno, mas confortável. Tinha pouca bagagem. Quarto e sala, com um banheiro e uma cozinha diminuta. Alguns móveis, TV e o computador. Na verdade ele não se importava com nada daquilo, só queria deitar em sua cama e temporariamente esquecer a própria existência.
Não conseguia esquecer o seu recente divórcio, por conta de sua constante depressão e os remédios receitados pelo seu neurologista que inadvertidamente lhe causaram uma espécie de castração química. Não conseguia pensar em nada que levantasse o seu espírito. Só queria ficar um tempo deitado e esvaziar a própria mente.
Formado em Letras, dava aulas em uma pequena escola municipal, mas estava de licença médica. O celular tocou. Era Raul, professor de Geografia na mesma escola. Deixou tocar, não tinha ânimo para atender. Só conseguia pensar na ex-mulher e os bons momentos que agora estavam presos no passado e nunca mais retornariam. Estava sem chão, sem ânimo para comer, beber ou tomar banho. Tinha perdido a noção do tempo quando a campainha tocou. Achou estranho porque ainda não tinha passado o seu novo endereço para ninguém, mas mesmo assim resolveu abrir a porta.
Do lado de fora estava uma linda mulher de olhos verdes, uma peruca ruiva comprida e lisa, corpo bem definido, coxas torneadas e seios fartos. Era um pouco menor que ele.
_Boa noite! Me chamo Krystal._disse ela estendendo a mão._ Eu sou sua vizinha e trabalho como garota de programa. Percebi que você se mudou recentemente e achei justo te informar que de vez em quando o trânsito fica meio movimentado nesse corredor, por razões óbvias né?
Ele sorriu e ele repetiu o gesto, meio sem graça .
_De vez em quando o bicho pega e as coisas ficam meio barulhentas, espero que você não se incomode.
_Eu sinceramente não sei como responder a essa afirmação.
_Eu compenso você pelo incômodo. _ disse ela piscando para ele de forma insinuante.
_Eu estou ficando realmente desconfortável com essa conversa. Não se incomode comigo. Está tudo bem.
Fechou a porta enquanto se perguntava se aquela conversa tinha realmente acontecido. Deitou-se no sofá e ficou olhando o vazio por alguns minutos até a campainha tocar novamente. Era a mesma garota, agora com cabelo curto azul celeste.
_Me desculpe, acho que passei a impressão errada.
_Não tem problema. Não prestei atenção.
_Tem problema sim, porque eu não sou daquele jeito. Eu me apresentei meio que no piloto automático. Era um personagem, por assim dizer. Não quero que você pense que a sua vizinha é um tipo de piranha vagabunda.
_Acredite, moça. Eu não estava pensando nada. Nada mesmo.
_ Meu verdadeiro nome é Kátia. Kátia Flores.
_Edgar Paranhos.
_Eu sou garota de programa, acho que você já percebeu.
_Sim.
_ E você?
_Eu estou afastado pelo INSS. Depressão. Sou professor.
_Ah, ok_ disse ela sem saber o que responder. Foi indo embora e antes de entrar em seu apartamento disse: _ Se precisar de alguma coisa é só me falar. O pessoal aqui nesse andar tem preconceito e não conversa comigo. Na verdade, sou bastante solitária. Entrou com a cabeça baixa e fechou a porta, deixando o corredor do andar com um silêncio bastante constrangedor. Ele entrou em sua casa, sentou-se no sofá e depois de um tempo escreveu um bilhete que deslizou por debaixo da porta da moça.
No dia seguinte Kátia percebeu um pedaço de papel no chão enquanto tomava café. Seu gato Tobias brincava com ele, por isso estava um pouco rasgado. Já ia jogar no lixo quando percebeu que algo estava escrito nele:
"Bom dia. Gostei de conhecer você. Sou tímido. Estou passando por uma fase ruim e não gosto de ficar sozinho. Fique à vontade para me visitar quando quiser.
Att
Edgar"
Assim que terminou de ler, ela sorriu, mudou de roupa e foi convidar seu vizinho para tomar um café. Este tinha dormido cedo pois estava desanimado demais para fazer qualquer coisa. A amizade entre eles pode fluir naturalmente, já que nenhum deles cogitava sexo ou relacionamento. Assistiam a filmes e faziam refeições juntos. A união se revelou saudável para ambos e embora tudo parecesse bem, o professor começou a ficar incomodado com a ocupação da moça. Não era ciúmes nem machismo. Ele ficava chateado porque achava que ela tinha potencial para fazer algo mais especial, seguindo a sua linha de raciocínio. Tinha medo dela se ofender e se afastar dele, por isso aguentou tanto o quanto pode. Estavam sentados em seu sofá um dia quando finalmente ele disse:
_ Estava querendo te perguntar uma coisa, mas tenho medo de te chatear.
_Engraçado, estava querendo te perguntar algo também.
_ E agora? Quem pergunta primeiro ?
_ Sei lá. Tanto faz. Pode começar.
_ Você gosta do seu emprego?
_ Caraca, era exatamente o que eu ia te perguntar! Tinha medo que você se ofendesse! Demorei um tempão para tomar coragem.
Ambos ficaram um tempo em silêncio. Na verdade, nunca tinham parado para refletir. Ela gostava de sexo e não via problema em ganhar dinheiro com isso, mas a bem da verdade já estava ficando cansada de tantos clientes escrotos que a tratavam como lixo. Raramente acabava pegando algum menos asqueroso. Além disso no fundo ela tinha vontade de formar uma família, trabalhando como atriz ou cantora numa casa de shows. Os anos foram passando e ela se acomodou, pois tinha a vantagem de fazer os próprios horários e cobrar o quanto quisesse. Mais quais seriam realmente suas opções? Será que ela tinha alguma? Não se sentia capacitada para mais nada além daquilo e ficou muito triste quando percebeu isso. Levantou-se e foi embora chorando sem dizer nada.
Edgar se sentiu péssimo porque achou que não tinha o direito de perguntar algo tão pessoal. Cada lágrima dela doeu como um espinho perfurando a sua alma. Sentiu seu corpo franzino se tornar ainda mais insignificante. Foi então que ele percebeu o tamanho do carinho que sentia por Kátia. Não sabia dizer se era amizade ou amor. Só sabia que a queria em sua vida, dividindo opiniões, choros e risadas. Tinha vontade de colocá-la em seu colo e protegê-la de todos os males do mundo, beijando a sua testa e embalando o seu sono.
O castramento químico permitiu que ele a enxergasse além dos arquétipos sociais e isso eliminou a óbvia atração física que provavelmente acabaria nublando o seu julgamento. Por fim refletiu sobre o que ela ia lhe perguntar. O trabalho de professor era realmente satisfatório para ele? Seu psiquiatra tinha dito sobre o seu sentimento de inadequação ao contexto em que se encontrava.
Filho único, teve uma infância solitária, já que sua timidez sempre impediu que ele tivesse muitos amigos. Cresceu lendo livros e com eles construiu o seu universo. Conheceu a sua primeira e única namorada (que mais tarde se tornaria sua esposa) na faculdade. De certa forma tinha colocado a sua vida no piloto automático, aceitando as dificuldades, sem paixões nem experiências que lhe trouxessem uma nova perspectiva. Nunca tinha tomado nem um gole de cerveja, fumado um cigarro, andado de bicicleta em alta velocidade ou nadado em cachoeira. Sua vida até então fora seca e insossa. Nunca correu nenhum risco e isso o frustrava profundamente, só não tinha percebido isso até aquele momento.
Decidiu então tomar a atitude mais arriscada que podia conceber: abandonou todos os ansiolíticos que estava tomando e foi bater na porta de sua vizinha, a fim de expor toda a sua vulnerabilidade e seus sentimentos por ela. A princípio estava bastante confiante, depois ficou um pouco apreensivo, mas não recuou. Marchou em direção à porta da moça, tocou a campainha, mas ninguém atendeu.
Os dias se passaram e ele não a viu mais. Seus clientes deixaram de aparecer também, o que era bastante estranho. Estaria ela procurando emprego? Isso seria bacana. Sentiu-se um pouco responsável por essa possibilidade e ficou um pouco excitado ao pensar que sua opinião importava tanto para ela. Certamente ela já tinha considerado isso antes, mas porque agora era diferente? Por causa dele? Será que a afetividade era mútua? Sentiu então um princípio de ereção em sua cueca. Mas aí ele viu que precisava mudar também, era uma rua de mão dupla, não adianta se somente uma das partes caminhar nesse sentido.
Tomou remédios para incrementar a sua testosterona, começou a fazer caminhadas e exercícios. Sentia-se renovado graças a uma pessoa que conhecia muito pouco, mas isso não fazia diferença. Ela fez com que ele percebesse que poderia ser uma pessoa melhor, se tivesse disciplina, esforço e dedicação. Aquela mulher, apenas com a sua simpatia e humildade, tinha lhe dado o melhor tratamento para o seu problema. Estava curado, mas não queria voltar a dar aulas. Começou a fazer um curso de gastronomia e descobriu o seu dom. Progressivamente foi evoluindo até se tornar o chef de um restaurante famoso. Estava feliz, tinha começado a namorar uma garçonete, mas nunca tinha se esquecido da sua musa inspiradora, que subitamente tinha desaparecido de sua vida.
Certo dia estava em sua rotina feliz quando viu ela entrar em seu restaurante, acompanhada de um homem distinto com um bebê no colo. Foi então que ele percebeu o que havia acontecido. Na noite de sua epifania, Kássia foi chorando para o bar e lá encontrou um milionário. Começou a namorar e eventualmente se casaram. Edgar sentiu um soco no peito que fez com que ele soltasse a concha que estava segurando. Na verdade, não existe uma fórmula matemática para resolver os problemas. Algumas pessoas alcançam o bem-estar pelo esforço, outras simplesmente acham um atalho. De uma maneira ou de outra, ela tinha lhe dado exatamente o que precisava. Caprichou no prato daquela mesa e disse à sua namorada, que se chamava Nina e era sua vizinha no andar de cima:
_ Esse pedido é por minha conta.
_ Porquê?
_ Mais tarde eu te explico . É uma longa e estranha história_ respondeu ele com um sorriso no canto da boca.
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