Conta um conto

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Um amor mais ou menos eterno

 

 

A curiosa história de Ludovic e Petrucchia tem início no século XIX, quando o jovem russo caçador de vampiros partiu em busca de seu mestre Nicanor Afanasyev que tinha desaparecido misteriosamente em uma floresta na Romênia. Ele foi investigar estranhas mortes envolvendo cadáveres com dois buracos no pescoço. Seu aprendiz se prontificou a ir, mas ele preferiu deixá-lo estudando e só chamá-lo se houvesse uma confirmação, tendo em vista a enorme quantidade de pistas falsas que tinham recebido ao longo dos anos. O jovem esperou pacientemente e depois de um mês sem notícias ele resolveu ir atrás do mesmo, preocupado com o que poderia ter acontecido. Foram dias a cavalo debaixo de um frio intenso, chegando finalmente em Moldova, que faz fronteira com a Ucrânia. 

Chegando em uma estalagem nessas redondezas foi que ele conheceu essa misteriosa linda jovem de pele branca como a neve e cabelos negros, que sorria muito pouco e desaparecia junto com o sol todos os dias. Ela vendia lenha, sem possuir braços de lenhadora. O jovem ficou cada vez mais intrigado e não percebeu que estava se apaixonando por aquela que provavelmente matou o seu mestre. Um dia resolveu seguir a moça e teve a sua confirmação: ela era a vampira que ele estava procurando. Teria ele a coragem de matá-la? 

Enquanto retornava para a estalagem pensando no seu próximo passo foi surpreendido pela mesma, que nem se preocupou em limpar a boca suja de sangue. Ela o segurou contra a parede do celeiro e disse: 

_ Eu sei quem você é e o que veio fazer aqui. O que vai fazer a respeito? 

Ele não conseguiu esboçar uma palavra, pois estava ao mesmo tempo amedrontado e atraído por aquela misteriosa mulher com a boca vermelha, seios fartos e caninos salientes. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa ela o beijou nos lábios. Na verdade, a sua estratégia sempre foi seduzi-lo para disfarçar a sua identidade e atacar quando o mesmo estivesse vulnerável. Já tinha percebido que ele era um caçador, tendo em vista que o mesmo não se esforçou em ser discreto a respeito disso. O que a predadora não esperava é que fosse estranhamente cativada pela timidez e sensibilidade de sua presa. A partir daquele momento tornaram-se amantes por muitos anos, sendo ele eventualmente transformado em vampiro para acompanha-la por toda a eternidade. Bom, pelo menos essa era a ideia inicial. Depois de um século de união ela se cansou e o abandonou, desaparecendo da noite para o dia. 


 

A partir desse momento Ludovic, que nunca a deixou de amar, se sentiu perdido, desamparado. Era dono de um prestigiado antiquário na Ucrânia e não tinha dificuldades econômicas. Se alimentava do sangue de animais em sua fazenda, não por uma questão ética, mas por discrição mesmo. Se embriagava quase todas as noites com vinho em sua refinada adega, onde bebia deitado no chão até apagar e esquecer temporariamente o seu vazio interior. Se sentia uma carcaça ambulante, um barco à deriva, um espectro preso entre o céu e a Terra. Dias viraram semanas, que viraram meses, que viraram anos, que viraram décadas. Até que ela subitamente retornou, mas não pelo motivo que ele esperava. 

Era o fim de mais um dia e ele estava indo para a adega afogar as suas mágoas quando ela reapareceu em sua frente, sem dar explicações. Simplesmente disse: 

_ Preciso muito da sua ajuda. 

_ Tinha me esquecido de o quanto a sua frieza me incomoda. 

_ Como assim? 

_ Você reaparece depois de anos sem dar ao menos um abraço? Você certamente está morta há mais tempo que eu, mas ainda valorizo essas pequenas demonstrações de carinho. 

_ Não é isso, claro que sinto falta da sua companhia. 

_ Não acredito. Você não deu nem sinal de vida por todos esses anos. Fiquei sofrendo sozinho igual um trouxa, esperando você voltar. 

_ Desculpe, mas achei que você estivesse cansado de mim. Eu estava me sentindo um fardo em sua vida. Pensei que você precisasse de outras experiências, outras mulheres, sei lá, um pouco de variação. Eu sinceramente estava me sentindo um pouco entediada e achei que precisava de mais. Me senti uma âncora te arrastando para o fundo, mas nunca deixei de te amar. 

_ Você sumiu sem deixar nem um bilhete, uma carta, nada. Agora me diz que estava entediada. Perfeito. Um século de convivência e até o diálogo foi embora...acho que não temos mais nada para discutir. Não acredito em você e vou encher a cara para tornar essa minha rotina suportável. 

_ Espera, eu não terminei._Ela pegou o braço dele e puxou, abraçando Ludovic bem forte. Começou a chorar lágrimas de sangue_ você sabe que eu nunca quis esse destino para a gente. 

_ Mas foi assim que acabamos, seja por bem ou por mal._ disse ele com o coração apertado e os olhos fechados, enquanto aproveitava aquele abraço do qual sentia tanta falta. _ eu sei que vou me arrepender, mas preciso perguntar: o que te trouxe de volta para mim? Não acredito que seja só saudade, senão você tinha retornado antes. 

Ela fez uma pausa e o soltou, respirando fundo. Realmente havia uma segunda intenção naquela visita. 

_Preciso da sua ajuda para rastrear um vampiro muito perigoso, que está fazendo coisas horríveis e não pode continuar vivo. Você era um caçador antes de me conhecer e acredito nas suas habilidades. 

_ Tendo em vista como a minha carreira nesse ramo acabou, não acho que eu seja a pessoa mais indicada. 

_ Você foi melhor que o seu antecessor, disso tenho certeza. _ disse ela com um leve sorriso nos lábios. 

_ O que aconteceu com ele, a propósito? Estranho como nunca conversamos sobre isso... 

_ Eu joguei o meu charminho, mas ele não queria o que eu estava oferecendo. Então deixei ele nas mãos do meu primo Aelfric. Nunca mais ouvi falar dos dois. Acho que essa história terminou bem. 

Ludovic levou um tempo processando até entender o que tinha realmente acontecido. Depois disso finalmente disse: 

_ Bom, se levarmos por esse aspecto eu nunca tive a menor chance contra você. Estava condenado desde o princípio. 

_ Estava mesmo. _ disse ela beijando sua bochecha. 

_ Não sei se sou o mais indicado, mas faço qualquer coisa para ficar perto de você, então quem vamos caçar? 

_ O nome dele é Sandor e ele adquiriu o hábito grotesco de se alimentar exclusivamente de bebês recém-nascidos. 

Ludovic ficou perplexo por alguns instantes, afinal sabia que os vampiros não eram santos, mas todos aqueles que tinha conhecido até então obedeciam a limites. Isso era bem grotesco, até para um vampiro. Entendeu também porque aquilo mexia pessoalmente com Petrucchia, que sempre quis ser mãe, mas foi transformada antes que isso acontecesse. Voltou para a sala da sua casa, sentou-se no sofá e calculou a sua estratégia com cuidado. 

_ Você tem alguma ideia do paradeiro dele? _ Perguntou o vampiro depois de respirar fundo e pensar a respeito. 

_ Ele virou notícia em uma cidadezinha na Alemanha. Felizmente discrição não é o seu forte. Eu não posso com ele sozinha.  E não consigo mais suportar que isso prossiga. 

_ Eu vou contigo. Mas antes preciso saber: agora há pouco você estava falando sério ou jogando charme para que eu fosse com você? 

_ O que você acha? 

_ Prefiro não saber. Eu iria de qualquer jeito. Você sabe que eu não te nego nada. 

_ Eu te amo, seu bobo. _ disse ela disse ela dando um leve beijo nos seus lábios. _ Agora vamos embora que temos um longo voo pela frente. 

Chegaram à noite na pequena cidade de Cochem. A cidade à beira do rio Mosel guarda uma arquitetura medieval e seria o esconderijo perfeito para um vampiro, se ele fosse discreto. Os vinhedos que cercam a cidade chamaram a atenção de Ludovic, mas ele preferiu comentar isso com Petrucchia. Foi difícil não chamar atenção no dia seguinte, por isso resolveram passar o dia no hospital, fingindo alguma enfermidade. Assim ficavam de olho nos pequenos bebês que certamente atrairiam Sandor. 

Durante essa tocaia o casal pôs a conversa em dia, sentados na sala de espera da instituição. Ele aproveitou a companhia dela o máximo que pode. Sentia falta do seu perfume e de sua voz. Não precisava que fossem amantes novamente. Só queria estar por perto. Era o bastante para a sua alma estar em paz. Ela por sua vez sentiu preenchida pela primeira vez uma falta que ela nem sabia que possuía. E absorveu aquele carinho silencioso com todas as suas forças. 

Durante aquela madrugada eles sentiram uma estranha movimentação no setor da maternidade. Chegaram correndo e avistaram uma silhueta no escuro babando em cima dos bebês no berçário. Petrucchia entrou correndo e tropeçou em uma enfermeira mutilada no chão, acabou batendo a cabeça em um dos berços e caiu inconsciente. 

Ludovic veio correndo logo atrás e saltou em direção à Sandor, que pegou seu pescoço com uma das mãos. Os dedos compridos com unhas grandes quase asfixiaram o vampiro que se agarrou na criatura e jogou o peso de seu corpo em direção à janela. Pegou a corda da persiana e a enrolou em seu pescoço. Sandor o largou, dando uma pequena janela de tempo para que o ex-caçador fizesse a sua primeira e última vítima, atirando-se da janela e levando a criatura junto. 

O sol já estava nascendo quando Petrucchia acordou. Ela se levantou, viu a vidraça quebrada e olhou para baixo. Viu o cadáver de Sandor com um enorme pedaço de vidro enfiado em seu peito e Ludovic estirado no chão com um estranho sorriso e a sensação de dever cumprido estampada em seu rosto. Ela desceu correndo enquanto lágrimas de sangue brotavam de seus olhos. Morreram juntos, ele com a cabeça no colo de sua amada, que por sua vez tinha jurado em silêncio para si mesma que não o abandonaria uma segunda vez. 


                               

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