Conta um conto

sábado, 29 de maio de 2021

A Expedição Kaipang

 Alphonse Mortimer Terceiro subiu apressado a escadaria da sede do Clube de Exploração e Cartografia de Midwaffle naquela manhã quente de 1923 no Reino Unido. Uma expedição havia retornado do Ártico com o diário congelado de James Clifford, um antigo membro da organização que havia partido em uma excursão ao Oriente, afirmando ter provas conclusivas de que o lendário Yeti realmente existia e iria capturar um para ser empalhado, sendo que uma simples fotografia já bastava. Desapareceu e nunca mais retornou. Todos estavam muito ansiosos para saber de seu paradeiro. No salão já estavam todos os membros reunidos junto ao Almirante Clements, que foi quem trouxe a brochura. 

_ Vocês o encontraram? Talvez ele esteja vivo. _ disse Alphonse com um pouco de remorso porque havia zombado muito da proposta do colega antes de sua viagem. 

_ Nós o encontramos dentro de uma caverna, sentado com as mãos no rosto. Na minha humilde opinião ele morreu congelado e gritando de pavor. Essa visão irá assombrar os meus pesadelos pelo resto dos meus dias. 

_ E o diário? Como vai indo o descongelamento? Precisamos saber o que aconteceu com ele. 

_ Estamos fazendo de forma lenta, pois o nosso maior receio é o gelo se transformar em água muito rápido e borrar o texto, comprometendo assim a leitura do mesmo. Na verdade, agora as páginas estão somente úmidas, pois ele descongelou na viagem de volta. A publicação estava sobre a mesa. Alphonse tirou a sua luva de couro e começou a folhear a mesma com cuidado. 

A narrativa contava a história do viajante, que partiu com sua equipe com destino à Cordilheira do Himalaia para encontrar a misteriosa criatura, mas no meio do caminho acabou se desviando de seu curso por causa de uma avalanche e descobriu por acidente uma cidade revestida de ouro chamada Kaipang, onde foram muito bem recebidos. Entretanto, algo deu muito errado e ele acabou sendo perseguido por alguma coisa até os confins do Ártico, onde passou os seus últimos dias. 



Grande parte dos exploradores ficou obviamente atraída pela oportunidade de revisitar esta nova civilização, especialmente pelo fato de a mesma conter em abundância o metal tão cobiçado pela humanidade ao longo dos anos. Alphonse, entretanto, ficou pensando no que poderia ter assustado alguém a ponto de fugir para tão longe, perder suas forças e finalmente sucumbir no gelo. Estudou o diário com afinco e copiou em um novo caderninho todas as anotações, sejam elas símbolos, desenhos ou textos. As instruções para chegar lá estavam bastante precisas, o que levou alguns grupos mais ansiosos a partirem antes dele para conquistar o referido local. Ele não se importou com isso, seu interesse no local era outro. Tomou seu tempo e analisou, comparou, estudou. Escreveu suas deduções para finalmente montar um grupo. Colocou um anúncio no jornal e fez a sua seleção. 

A sua equipe incluia o Chef Dante, o escocês especialista em armas Wallace Flint, O cartógrafo francês Marlon e o biólogo italiano Matteo, além de Bóris, o buldogue de Alphonse que os acompanharia como mascote.  

A viagem até o norte da China, onde ocorreu a avalanche seguiu sem problemas. Não foi preciso checar no diário para saber a direção que Clifford tinha tomado: uma trilha estreita dentro de uma floresta densa era o único caminho possível. Seguiram a pé. O sol estava se pondo e começava a escurecer. 

_ Tenho a estranha sensação de que estamos sendo seguidos. _ disse Marlon 

_ Muito provavelmente um animal, um urso talvez. _ completou Wallace 

Bóris está alerta, não se preocupem. Ele vai dar o sinal se alguma coisa aparecer, não é, garoto? _ disse Alphonse fazendo um cafuné no seu amigo canídeo. 

O caminho foi ficando cada vez mais estreito e escuro. Começaram a ouvir uma respiração abafada, seguida de um rosnado.  

_ Acho melhor a gente procurar logo u lugar para acampar e montar uma fogueira. _ disse Matteo. _ seja o que for essa criatura não vai abandonar a gente tão cedo. 

Seguiram andando no escuro até encontrarem uma pequena clareira, onde se instalaram para passar a noite. Comeram carne seca com feijão enlatado e revezaram turnos de vigia com a arma de Flint. Dante foi quem avistou a ameaça mais de perto. Foi durante a madrugada. Estava de guarda e quase dormindo quando Bóris o acordou latindo muito. Abriu os olhos e viu uma criatura peluda, andando em duas patas enquanto segurava e comia um pequeno animal, mais ou menos do tamanho de um coelho. Tentou espremer os olhos para tentar enxergar melhor, mas não viu nada com clareza. 

No dia seguinte seguiram andando e de repente avistaram um esqueleto humano encostado embaixo de uma das árvores no caminho. Presumiram que fosse de um dos primeiros exploradores que talvez tivesse sido atacado por um animal ou tivesse sido picado por uma cobra, terminando assim brevemente a sua jornada antes mesmo de começa-la. A vegetação ia ficando cada vez mais seca e escura, enquanto a trilha de terra ia adquirido gradativamente a consistência de um barro fétido. O cenário foi se tornando cada vez mais mórbido e desértico, a medida que avançavam. Nada disso era novidade para Alphonse, pois estava tudo muito bem descrito no diário. 



Ainda que o líder da expedição estivesse ciente do terreno em que seu grupo estava, nada os preparou para a estranha revoada de morcegos que subitamente os atacou. Era diferente de qualquer espécie que eles tinham visto antes. Eram morcegos cabeça de martelo, com um tamanho enorme e um estranho apetite por sangue. Matteo afirmou que eles normalmente se alimentam de frutas, mas alguma coisa havia modificado a sua dieta e o seu comportamento. O cartógrafo ganhou várias mordidas no braço e Dante levou uma na cabeça. Wallace matou tantos quanto pode e Matteo usou uma vara comprida para agitar e atrair os marsupiais para longe, enquanto corria e pensava em como se livrar deles.  

De repente o biólogo foi atacado pela criatura da noite anterior, que mordeu o seu pescoço, matando-o assim instantaneamente. O restante da equipe ficou tão chocado com aquela cena que Wallace mal teve tempo de sacar a sua arma e dar alguns tiros. O buldogue foi correndo e mordeu a perna esquerda da criatura, que agitou o seu braço e o arranhou com as garras afiadas da mão, causando ferimentos profundos no valente cão. Boris soltou um ganido e caiu deitado no chão, para desespero de seu dono que foi correndo em sua direção com muita raiva, enquanto atirava sem mirar na criatura que o encarava sem medo. Agora ele podia enxergá-la melhor: tinha os olhos amarelos e pelos por todo o corpo, um aspecto humanoide e a boca arreganhada, cheia de dentes pontudos, soltando guinchos ensurdecedores. Como ela não recuava perante o constante avanço de Alphonse, Wallace teve a ideia de atirar uma rede para imobilizá-lo. O explorador era uma mistura de ira e surpresa, pois tinha descarregado uma pistola na criatura e não tinha afetado a mesma em nada. Talvez tivesse sido isso que tinha afugentado Clifford para tão longe. 

Ainda assim vários mistérios continuavam sem explicação, como a própria existência daquela aberração que tinha assassinado o seu amigo biólogo. Depois de deixar aquela criatura pendurada em uma árvore qualquer, resolveram seguir viagem. Dante, que além de cozinheiro era um ótimo desenhista, pediu emprestado o caderno de Alphonse para fazer um registro gráfico daquela entidade, para uma futura identificação da mesma em algum catálogo ou enciclopédia daquela época. O sol começou a ficar cada vez mais forte e a água foi se escasseando. Bóris se curou dos ferimentos, mas aparentemente sofreu algum tipo de infecção, pois teve febre, andava em ziguezague e tinha alucinações, latindo e correndo em círculos por horas. Estavam com a boca seca e quase desmaiando quando avistaram três homens com curiosas vestes, parados no meio do caminho com lanças compridas e afiadas. James tinha escrito sobre eles. Eram os guardiões de Kaipang. Iriam avaliar se o grupo de exploradores era digno de adentrar a sua cidade.  

Depois de uma série de perguntas para avaliar a índole dos mesmos, resolveram permitir que eles adentrassem a cidade, que ficava escondida atrás de uma extensa cortina de plantas, encobrindo um túnel de pedra que dava acesso àquela civilização.  




Outros já tinham tentado passar por ali, mas a sua ganância foi logo percebida pelos habitantes e seu destino foi bastante trágico. O local era realmente muito bonito, com vastos jardins, chafarizes e fontes, tudo recoberto de ouro e flores. A equipe de Alphonse estava embasbacada com tamanha beleza. Marlon, Dante e Wallace não paravam de pensar nas riquezas que levariam dali, enquanto o líder da expedição estava mais preocupado em preencher as lacunas do misterioso diário que tinha caído em suas mãos.Foram levados à presença do chefe Yoyangachoi, que estava sentado em uma espécie de trono, segurando um cetro de ouro com uma pedra em sua ponta que brilhava em diferentes cores, dependendo da angulação da luz do sol. Após uma breve conferência com os visitantes, ficou bastante claro que eles poderiam ficar ali o tempo que quisessem, desde que não adentrassem o templo Gigamachi, onde ficava guardado o Ovo de Jade da Fênix. O local não tinha nem guardas, pois todos os que tentavam roubar essa joia sofriam uma maldição horrível, que era específica de acordo com o caráter de cada um. Mortimer então perguntou: 

_ Estou procurando o paradeiro de um conhecido meu que passou por aqui, James Clifford. Você o conhece? 

_ Conheço sim, mas ele não cobiçou a jóia. Seu crime foi pior. 

_ O que ele fez? 

_ Ele bisbilhotou nas escrituras sagradas e cortejou a filha do chefe. Isso também é proibido. 

_ Você avisou a eles para não fazerem isso? 

_ Não, porque é questão de bom senso, não concorda? 

_ Não tenho como discordar, respondeu Alphonse. Qual foi a punição? 

_Ele recebeu a praga da ameaça imaginária. Seu pior pesadelo o perseguiu até os seus últimos dias. 

“Provavelmente um Yeti horrendo”, pensou Alphonse. 

De repente Bóris, que a essa altura já estava visivelmente enlouquecido por causa da infecção de seus ferimentos, avançou e mordeu a perna de um dos sacerdotes que estavam enfileirados ao lado do líder daquele povo. Este, por sua vez pegou o seu cetro e bateu repetidas vezes na cabeça do animal, espalhando o seu cérebro por todo o recinto. Alphonse, obviamente transtornado com aquilo, fez menção de puxar a sua arma, mas uma sombra saiu da pedra na ponta do instrumento e sugou a sua alma, fazendo com que o seu corpo inerte tombasse no chão. Marlon e Dante saíram correndo e tentaram carregar qualquer peça de ouro que estivesse ao alcance de suas mãos, mas seus corpos começaram a se decompor até apodrecerem completamente, antes de chegarem aos limites da cidade. Por fim, o chefe pediu que as páginas do diário fossem deixadas em algum ponto específico na estrada junto ao corpo do explorador, pois o Deus Hywantou precisava de mais oferendas. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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