O Crepúsculo chega na cidade de Pedra Fina e Tenório está retornando para casa após mais um dia de trabalho na fazenda do coronel Sebastião Nunes. O cansaço é grande, mas a lembrança do perfume de sua esposa Maria Soledade lhe acalma o coração. Sua voz doce e acalentadora é como uma brisa perfumada que restaura todas as suas energias. Ia trotando em seu cavalo, sem pressa de chegar em casa quando começou a perceber que algo estranho havia acontecido. Uma multidão de pessoas assustadas e tristes estava amontoada ao redor de sua residência. O varal tinha sido derrubado e a porta de madeira da entrada estava completamente destruída, como se alguma pessoa ou bicho muito forte a tivesse rasgado como papel. O rapaz desceu do cavalo e passou apressado pela multidão, mas foi detido pelo delegado Clemente.
_Não te recomendo passar desse ponto. Disse o homem num tom grave, sem conseguir olhar Tenório nos olhos_ é para o seu próprio bem.
_Mas eu preciso passar, é a minha esposa. Respondeu o moço preocupado com o chapéu na mão. _ O que aconteceu com ela, meu Deus?
_ Não tem maneira certa de suavizar essa notícia. Ela foi assassinada.
_ Por quem?
_ Não sabemos. Estamos investigando…
_Mas quem mataria alguém tão doce como a Dadinha?
_Realmente será quase impossível achar suspeitos. Sua mulher era um doce de pessoa. Não tinha uma pessoa que falasse mal dela. Até o padre Almeida tem mais defeitos e pecados kkkkkk
Os paramédicos jogaram um lençol por cima da moça, em sinal de respeito.
_Como ela morreu, delegado?
_Estrangulada. Não mostrou resistência. Deve ter sido rápido. Parece que tava rezando quando aconteceu. Ainda tava de terço na mão.
_Então foi obra do coisa ruim. Só pode ter sido.
_Como assim?
_Alguém foi possuído e matou a minha dadinha. Simples assim.
_Olha, eu sei que o senhor tá abalado, mas por favor não faça nada leviano. Só me deixe fazer o meu trabalho.
Enquanto Tenório foi cuidar dos arranjos para o enterro da esposa, o delegado foi seguir a trilha do assassino que parecia ser alguém muito alto e forte.
Não foi difícil acompanhar o rastro do agressor em questão, que deixava pegadas descalças profundas, além de amassar o capim por onde ia passando. Escureceu rapidamente, então eles acenderam suas lamparinas e prosseguiram. Um grito bestial rompeu o silêncio que imperava até então. Os policiais que acompanhavam Clemente quiseram voltar, afirmando que talvez fosse Monga, a mulher gorila do circo itinerante que estava à solta para cometer atrocidades.
_ Deixem de bobagem. Retrucou o delegado. _ Aquilo é truque de espelhos.
_ Sei não. _ disse o cabo Afrânio. _ já ouvi relatos de que ela mutilou idosos e crianças.
_ E eu já ouvi que ela tem força e velocidade sobre-humanas. Corre mais que cavalo de corrida. _ completou outro policial amedrontado.
_ Silêncio! Nunca ouvi tanta besteira junta! Vamos nos ater aos fatos, sem superstições ou crendices!
Mais uma vez o urro foi ouvido, desta vez mais próximo. Seguiram andando mais um tempo e acabaram avistando ao longe um homem enorme, curvado de costas para eles e esmurrando a porta da igreja. Estava usando apenas uma camisola de hospital.
_Precisamos de clorofórmio ou algo do gênero. _ pensou o delegado.
Pediu a um dos policiais que fosse até a casa do farmacêutico buscar a maior quantidade de éter e clorofórmio possível. Quem sabe até láudano, para poderem injetar naquele gigante incontrolável.
_Sem movimentos bruscos! _ disse o delegado. Apontar espingardas ou atirar só deixarão ele mais nervoso!
_ A gente podia jogar uma rede de pesca nele. _ sugeriu um dos policiais.
_ E quem vai segurar? Você? Essa coisa joga a gente para o alto sem ao menos suar.
_ Tive uma ideia. E se a gente o cercar com óleo ou azeite? Ele desequilibra, cai, não consegue levantar e aí a gente joga a rede de pesca.
_ Faz sentido. _ respondeu o delegado. _ pelo menos a gente ganha tempo até o sedativo chegar.
Enquanto confabulavam o gigante desistiu de bater à porta da igreja e saiu correndo em direção à uma floresta escura que estava ali perto. De repente parou, como se tivesse sentido um cheiro estranho no ar. Olhou para trás e finalmente avistou os policiais que o perseguiam. Um deles, obviamente assustado e sem saber o que fazer gritou:
_ Mãos ao alto! É a polícia!
O gigante musculoso pegou uma bicicleta de tamanho adulto que estava ali perto e jogou na direção deles. Um cachorro veio correndo e mordeu a sua perna, mas infelizmente foi agarrado pelo pescoço atirado contra a parede de uma das casas.
_ Quem faz mal para cachorro não é de Deus! Disse um dos policiais que logo em seguida disparou vários tiros com balas de borracha no estômago do agressor.
_Eu falei para não atirar, infeliz! _ gritou o delegado enfurecido.
_ Me desculpe patrão, mas o sangue me subiu à cabeça quando ele bateu no cachorro. Esse tipo de judiação me tira do sério.
Como o delegado havia previsto, o gigante careca urrou com a sua boca arreganhada e cheia de dentes tortos, além da pálpebra direita levemente abaixada. O luar iluminando seu rosto o deixava particularmente assustador. Veio correndo em direção aos policiais que tiveram a súbita ideia de atirar suas lamparinas no chão, gerando assim uma pequena barreira de fogo que o paralisou para em seguida sair correndo em direção ao mato escuro. Clemente caiu ajoelhado no chão e suspirando cansado, disse:
_ Nunca enfrentei nada assim. Preciso que o raciocínio prevaleça sobre o pânico.
O delegado decidiu então dispensar os policiais e ficar de sobreaviso, caso a criatura retornasse. Enquanto isso, no Centro de Tratamento Psiquiátrico Luz Interior, um enfermeiro estava desesperado e precisando falar com o Diretor Doutor Gabriel Montenegro, que já tinha se retirado para a sua casa. Chegou quase sem fôlego na recepção do local, procurando não atropelar as palavras que saiam desordenadas da sua boca.
_ O paciente do quarto 307 fugiu! Precisamos tomar alguma providência! Tenho que ligar para o diretor agora! Pode me informar
_ Incomodar o chefe fora do serviço é pedir para ser demitido. _ respondeu a recepcionista indiferente ao que estava acontecendo.
_ É um paciente perigoso, vidas estão em risco!
_ Como ele fugiu? É culpa de quem?
_ Ele se descontrolou durante a troca de turnos. O enfermeiro novo é muito religioso e estava com um terço no pescoço quando foi levar comida para ele. Foi só ver o crucifixo de relance pela fresta da porta que ele surtou. Eu nunca o vi tão agressivo. Arrombou a porta como se fosse papel. Eu estava no banheiro quando ouvi aquele grito gutural que me fez mijar pelas paredes.
_ Que nojo! Chama a faxineira para limpar que ninguém merece.
_ De tudo o que eu te falei foi nisso que você prestou atenção?
_ Também não entendi esse lance do crucifixo. Porque foi um gatilho para ele surtar?
_ Ele tem um passado violento relacionado a artigos religiosos. Apanhava muito dos pais, que o chamavam de aberração. A mãe dizia que sua deformidade física era castigo de Deus, que ele era amaldiçoado desde o berço e estava pagando pelos pecados de sua vida anterior. Batia nele com o crucifixo, numa tentativa muito bizarra e distorcida de exorcismo. Dizia ela que assim “o demônio seria expulso do corpo dele”. Quando o Conselho Tutelar foi acionado já era tarde demais. Atualmente a mãe dele está presa numa outra instituição, que faço questão de não saber o nome.
O paciente tem sido mantido sedado sem problemas, até esse incidente do crucifixo. Eu ia avisar, mas fui no banheiro antes. Era a primeira ronda dele nesse setor.
A recepcionista ficou bastante comovida depois de ouvir toda a história e passou o número do telefone. O enfermeiro discou rapidamente e o telefone fixo tocou umas três vezes, antes que o Diretor atendesse com um certo ranço na voz:
_ Alô, quem está falando?
_ Boa noite, senhor. Aqui é o enfermeiro Lázaro da Clínica. Desculpe incomodar, mas é uma urgência!
_Alguém morreu?
_ Não, doutor! Pelo menos não que eu saiba. Um enfermeiro se feriu porque um dos pacientes pulou a janela e fugiu.
_ Pulou como? Todas as janelas tem grades!
_ Ele derrubou as grades da janela atirando o bujão de gás da cozinha, senhor!
_ Caramba! Era bem forte então. Só pode ser o paciente do quarto 307.
_ Esse mesmo, senhor!
_ Amanhã eu cuido de repor a grade da janela e o bujão. Pode ficar tranquilo.
_ Mas e a fuga do paciente? Isso é o mais importante.
_ Vocês contactaram a polícia?
_ Ainda não, queríamos informar o senhor antes.
_ Fico feliz em saber, especialmente porque essa fuga nunca aconteceu. Entendeu? Nunca aconteceu! Não podemos correr o risco de perder verba do Estado por causa desse incidente! Não ficarei com esse atestado de incompetência nas costas!
_ Mas como assim, senhor? E o risco desse paciente para a sociedade que vive nas redondezas?
_ Nunca aconteceu! _ gritou o Diretor Gabriel que desligou o telefone logo em seguida.
Lázaro ficou alguns segundos segurando o telefone, revoltado e em estado de choque ao mesmo tempo. Sabia que se desobedecesse, provavelmente nunca mais encontraria emprego em lugar nenhum, pois o Dr. Montenegro iria destruir a sua reputação, isso era garantido e já havia acontecido em ocasiões anteriores. Só lhe restava ajoelhar em frente ao vaso sanitário e vomitar bastante, porque a noite seria longa e ele se sentia particularmente responsável pelo que aconteceria a seguir e que ele só ficaria sabendo pelos jornais.
Tenório passou a noite inteira velando a sua esposa. No dia seguinte, logo pela manhã foi procurar o Padre Almeida para fazer o enterro de Maria Soledade. Queria que o descanso final dela fosse à sombra do Cruzeiro que ficava num morro ali perto. Conseguiu um caixão com o dono da funerária, que fez questão de doar a esquife porque a moça tinha ajudado financeiramente a família dele há algum tempo atrás e ele sempre se sentiu em dívida com ela.
Tenório ajeitou com capricho sua esposa no féretro, para depois colocar numa carroça e puxar pela cidade até o seu local de descanso final. O padre ia na frente rezando, como se estivesse em procissão. Muitos viam aquela cena e choravam ao longe, percebendo que ele precisava ficar sozinho para se despedir dela. Jogavam flores na carroça e rezavam pela alma da pobre que tinha partido tão cedo. O céu escureceu e começou a chover.
_ Nem as nuvens conseguiram segurar as lágrimas. _disse Tenório triste enquanto a chuva escorria pelo seu rosto, mascarando o seu luto.
A lama dificultou a travessia da carroça até o morro onde estava o Cruzeiro de Madeira, que devia ter uns sete metros de altura, ponto de encontro para várias romarias e festas religiosas. Assim que chegaram, o cônjuge estava cansado, mas feliz de poder cumprir a sua promessa. O padre estava com seu guarda-chuva e ansioso para voltar para casa, apesar das circunstâncias.
Tenório começou a cavar a cova da esposa com a pá que estava na carroça, quando de repente ouviram um urro bestial. Era a criatura que tinha sido atraída pela cruz gigante de madeira! Depois de se recompor do susto, o vaqueiro em luto o reconheceu:
-É você, o endemoinhado que matou a minha Dadinha!
_ Que história é essa de endemoinhado?_ Perguntou o padre confuso.
_ Foi essa cria do capiroto que levou a minha mulher, padre! Ele tá com o demônio no corpo!
_ Essa é uma afirmação muito séria para se faz...
Não completou a frase porque foi atirado para longe com um simples golpe de braço do gigante. Em seguida foi caminhando em direção à cruz gigante, disposta derrubá-la.
Tenório ficou segurando a pá como se fosse uma arma, pronto para se defender. De repente um raio veio dos céus e partiu a cruz, fazendo com que a mesma caísse em cima do paciente perturbado, matando-o quase instantaneamente.
_ Deus é maior! Disse o vaqueiro que caiu ajoelhado com as mãos em oração! _ Deus é maior, Dadinha!
Depois que o padre recobrou os sentidos, decidiram enterrar a moça no cemitério mesmo. Tenório se tornou um católico fervoroso que agora rezava por ele e a alma de sua esposa.
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