Conta um conto

segunda-feira, 4 de março de 2024

Simbora, Curió!

 




Rufino Dias nasceu num casebre esquecido no interior do mato, mas sempre se viu destinado a fazer coisas memoráveis. Não tinha dinheiro, mas sua estranha retórica acabava convencendo as pessoas a conseguir sempre o que ele queria. Fez questão de aprender a ler numa pequena escola pública, para ter certeza que nunca seria enganado por quem sabia. Foi lá também que conheceu aquele que seria seu parceiro de crime, irmão de todas as horas: Inácio Silva, também chamado por todos de Curió, apelido que logo vingou porque era afrodescendente e em seu primeiro dia de aula estava usando uma jardineira castanho avermelhada, que sua mãe tinha se sacrificado muito para comprar para o filho usar em seu primeiro dia de aula. Um menino besta, querendo fazer graça logo gritou:

_Olha lá, parece um curió!

Todas as crianças começaram a rir, menos Rufino que respondeu sem hesitar:

_ Você quis fazer graça, mas acabou foi elogiando porque é um dos passarinhos que tem o canto mais bonito.

O jovem mulatinho que estava envergonhado sorriu e o abraçou, selando uma amizade que os acompanharia até a vida adulta. Precisavam se equipar contra as dificuldades da vida, pois sabia que ela não facilitaria para a dupla. Começaram com pequenos furtos que logo foram solicitando golpes mais elaborados. Criaram juntos uma linguagem de sinais onde podiam se comunicar à distância e em silêncio, caso algum imprevisto acontecesse durante o processo.

Rufino criou uma luva com ímãs colados nela, que lhe permitia pegar moedas com mais furtividade. O ladino prezava por sua elegância, usando sempre um chapéu Fedora marrom e um casaco de Veludo azul marinho com golas altas, que lhe davam confiança para iludir e enrolar os pobres desavisados. Seu fenótipo mouro gerava um certo desdém e preconceito, então precisava usar todas as armas que estivessem ao seu alcance. Usava palavras inventadas para parecer mais inteligente e letrado do que realmente era, pois gerava um certo constrangimento que ninguém desafiava corrigir dizendo que tal palavra não existia. Os ricos tinham medo de evidenciar a própria ignorância e o larápio sabia bem disso. Além disso, nunca gostava de se considerar um golpista ou algo do gênero. Dizia sempre que era acima de tudo um “manipulador de circunstâncias”. Fazia questão de deixar clara essa diferença.



Apesar da malandragem, tinham um código que levavam à risca: nunca pegar de quem era pobre como eles e no caso de roubar comida, levar só o suficiente para saciar a fome naquele momento.

Claro que nem sempre tinham sorte em suas investidas, o que os levou a serem presos várias vezes pelo delegado Arruda, um jovem idealista que sempre se posicionou como um representante da justiça, igual para ricos e pobres. Sua postura incorruptível acabou criando vários desafetos dentro da própria polícia.

Foi na cadeia que conheceram Tomásio Fontes, filho de um pescador português que gostava de trapacear jogando cartas no cais com os donos de estabelecimento locais que se achavam muito espertos para ganhar o dinheiro suado dos pobres trabalhadores do mar. Ele cresceu assistindo àquela injustiça e estudando cada movimento dos salafrários, para poder executar a sua vingança assim que atingisse idade para jogar. Era loiro, de cabelo anelado e pele branca que lhe permitiam ser subestimado pelos seus adversários. Ele parecia cordial e amigável, mas era o mais inescrupuloso do trio. Um dia, sentado na cadeia com eles finalmente desabafou:

_Essa cidade já deu. A gente tá visado demais. Precisamos mudar de ares.

_ Sua afirmação faz todo sentido, mas se a gente vai mudar de cenário, temos que ampliar a extensão da farsa.

Fugiram naquela mesma noite usando as luvas magnetizadas de Rufino para alcançar as chaves que estavam em cima da mesa, enquanto o carcereiro dormia depois de ter exagerado um pouco na bebida.



Subiram clandestinamente num trem de carga, pegando carona até a próxima parada do mesmo, em uma cidade chamada Lajedos. Durante o trajeto Rufino já estava planejando novas biografias para os seus companheiros e ele mesmo. Desde pequeno ele era fascinado pela história do Gato de Botas, onde graças às artimanhas do mesmo,o filho de um moleiro se transforma no Marquês de Carabás, com castelo e casamento com a princesa do reino. Ele sempre desejou realizar esse tipo de arranjo, mas nunca teve a oportunidade até aquele momento. Era perfeito, ninguém os conhecia. Podiam afanar o bastante para aparentar serem bastante ricos, isso não era problema. Ele seria Hugo Torres, filho do Coronel Pancrácio Torres, magnata do café nas fazendas mais ao sul do estado, com seu criado Murilo (teve que pensar assim pois sabia que a elite que encontrariam era bastante racista e Inácio tinha consciência disso). Estavam na comitiva do filho do primo do Governador, o jovem Abelardo Pereira Gomes Aguiar Lourenço Costa.

Depois de uma considerável “arrecadação” na estação de trem, seguiram procurando uma pousada para o pernoite momentâneo. Nesse instante o jovem articulador avistou uma linda morena de pele azeitonada pendurando lençóis no varal, sentindo logo em seu peito um impulso irrefreável para falar com ela.

_ Boa tarde, senhorita! Sou Hugo Torres, acabamos de chegar na cidade e estamos procurando um lugar para passar a noite. Você por acaso teria algum para nos indicar?

Ela ficou olhando o chão por um tempo, tentando lembrar o nome de um lugar ali perto. O vento batia em seus cabelos que tinham um inebriante perfume de canela, fazendo com que o farsante quase perdesse a linha do raciocínio. Por fim ela indicou uma casa de pensão que ficava a poucas quadras dali.

_ Muito obrigado pelas informações. E qual é a sua graça?

_ Meu nome é Adália.

_ Como a flor. Igualmente linda e perfumada.

Ela sorriu envergonhada e ele sentiu pela primeira vez uma pressão forte no peito, uma vontade de abraçar fortemente aquela mulher e nunca mais soltar. Esquecer de tudo e encerrar seus dias sentindo aquele cheiro intoxicante. Subitamente Curió tocou no seu ombro, trazendo-o de volta à realidade:

_ Vamos logo que vai escurecer.

Passaram a noite no local indicado e planejaram seus próximos passos. O encontro no dia anterior havia desnorteado Rufino um pouco e ele ainda estava bastante desconcentrado. Estava com o olhar perdido tomando café quando Tomásio entrou correndo e trazendo o jornal nas mãos. A notícia de primeira página era um evento onde o excelentíssimo prefeito da cidade Cássio Monteiro presidiu com sua esposa e sua filha solteira Luara. Assim que leram aquilo os três se entreolharam, concordando silenciosamente que ali estava o alvo deles.



Durante os dias seguintes eles seguiram estudando todos os hábitos daquela família a fim de obter uma infiltração cirúrgica. Era uma oportunidade imperdível onde o sucesso lhes permitiria até mesmo aposentar daquela vida de enganação. Rufino agora até tinha uma motivação a mais, pensando na moça que o tinha enfeitiçado. Visitava ela sempre que podia, conversavam bastante e à noite se acabavam no forró, onde Curió acabou se enroscando uma linda mulata chamada Dolores, mas não se envolveu tanto quanto o seu amigo. Estava focado na missão. Inclusive ficaram sabendo que haveria a inauguração de uma praça e tinham que se preparar pois seria lá que fariam a primeira aproximação.


O Português e o mulatinho estavam quase dando por perdida a investida quando Rufino apareceu no dia em questão mais concentrado do que nunca. Tinha finalmente oficializado seu relacionamento com Adália e foi como se isso tivesse lhe dado um fôlego extra, como se todo o seu sangue estivesse pulsando freneticamente em seu corpo.

Chegaram impecáveis ao evento. O prefeito cortou a fita e logo em seguida eles se aproximaram. Rufino, como um bom mestre de cerimônias, fez as apresentações com uma confiança ímpar, ganhando a confiança instantânea de todos.

_Que ocasião somburocrática para nos conhecermos! Disse ele empolgado.

Curió pegou embalo e completou:

_ Inclusive sua esposa e sua filha são muito supancas, se me permite dizer.

O golpista olhou para ele com ar de reprovação e disse:

_ Que horror! Onde já se viu uma falta de respeito dessas! Coloque-se no seu lugar, homem! Perdoem o meu criado, ele não teve a intenção de ofender.

Todos ficaram meio perdidos, inclusive o jovem mulato que ficou sem entender nada. Só estava inventando palavras como ele.

O prefeito dissipou aquele climão, dizendo meio sem graça que estava tudo bem. Inclusive os chamou para almoçar em sua casa. Luara era encantadora e Tomásio nem precisou de esforço para simular interesse na donzela. Os dias foram seguindo e o casal foi ficando cada vez mais íntimo, ao mesmo tempo em que Rufino foi se tornando uma presença cada vez mais frequente na casa de Cássio, tomando licores refinados de todos os sabores imagináveis, fumando charutos caros e começando inclusive a acreditar na própria mentira que perpetrava.

Foi então que em uma das festas ele testemunhou acidentalmente um acordo escuso para queimar e derrubar as casas da periferia para “melhorar a estética da cidade”, vendendo em seguida o terreno desapropriado para uma siderúrgica. Naquele momento ele sentiu uma náusea e um asco profundos além de raiva e vários outros sentimentos que ele não conseguiu diagnosticar. Só sabia que não queria mais ficar ali. Pediu licença e se retirou mais cedo, junto com os seus amigos, que não entenderam o que estava acontecendo. Ao chegar na rua, apoiou-se em uma parede e vomitou. Curió preocupado perguntou:

_Aconteceu alguma coisa? Você está bem?

_ Depois eu explico com calma, agora vamos para casa.

Assim que chegaram na Pensão, acabaram encontrando o delegado Arruda, que tinha seguido a pista deles até aquela cidade. Ele estava os aguardando sentado no sofá da recepção, com policiais guardando a entrada pelos fundos.

_ Quem entregou a nossa localização exata? Impossível você nos achar tão rápido._ disse um impressionado e curioso Rufino.

_ Confesso que tive um pouco de sorte. Mal cheguei na cidade e conheci uma moça muito simpática chamada Adália. Assim que contei a sua história ela ficou muito chateada e não hesitou em entregar vocês. Mentira tem perna curta!

Foi quando aquela noite horrível atingiu o seu ápice. Enquanto era algemado, o farsante sentiu as pernas fraquejarem e quase caiu. Enquanto iam no trem, ele pensou em tudo o que tinha perdido apostando numa fantasia tola. Se sentiu uma criança que pensava ser muito esperta, mas encontrou uma outra classe de calhorda muito mais perigosa e inteligente. As regras do mundo eram muito mais cruéis do que ele imaginava. Se sentiu ingênuo naquele momento e odiava isso, especialmente por envolver dois companheiros naquela situação. Pensava que estava no controle de tudo, mas sonhou demais, subestimou demais. Se sentia um lixo. Nessa porqueira toda perdeu inclusive aquela que tinha lhe apresentado uma outra realidade, onde ele não precisaria de criar narrativas para sobreviver. Tudo o que ele precisava era estar presente para ela e mesmo assim ele falhou. Virou-se para o delegado Arruda e tentou uma última cartada:

_ Se eu soubesse de algo terrível que está prestes a acontecer, isso aliviaria a nossa pena?

_ Depende de vários fatores. Se não for na minha jurisdição eu não posso fazer nada.

_ Realmente envolve o prefeito de Lajedos, mas se você denunciar pode ser visto como herói na mídia, ser promovido sei lá. O problema é que não tenho provas, mas sei que algo muito horrível está para acontecer. Não aguento mais guardar isso para mim mesmo. Você pode não acreditar, mas até nós trapaceiros temos princípios e o que presenciei é imperdoável.

Tomásio e Curió ficaram bastante curiosos, assim como Arruda que, por fim disse:

_ Você ganhou a minha atenção. Desembucha.

Ele então contou tudo o que tinha ouvido e visto. O delegado ficou bastante chocado, mas ficou receoso daquela informação ser mais um dos golpes de Rufino. Depois de um breve silêncio ele disse:

_Preciso de evidências para fazer uma acusação desse porte. Isso é bastante sério.

_Ah, então era por isso que você saiu estranho do evento e vomitou…_ refletiu Curió.

Rufino confirmou, acenando com a cabeça.

_ E agora a gente faz o quê? Simplesmente aceita as coisas assim e pronto? _ questionou Tomásio indignado.

_ É assim que as coisas são aqui no Brasil, infelizmente. Se a gente não tem como provar, não há nada a se fazer. Não dá nem para começar a pensar em uma investigação sobre o caso. A não ser que você tenha uma ideia escondida na manga _ afirmou o delegado.

De repente ouviu-se uma voz feminina bastante familiar:

_ Eu tenho!

Todos olharam para o fundo do vagão e viram Adália que tinha escutado tudo o que eles estavam conversando.

Os olhos de Rufino se encheram de lágrimas, estava emocionado e constrangido ao mesmo tempo. Tentou começar a se desculpar, mas ela o interrompeu:

_ A gente conversa sobre isso depois. _ depois voltando-se para os outros dois golpistas_ vocês se lembram da Dolores, que dançava forró com a gente?

_ Claro! _ Lembrou Curió com um brilho nos olhos.

_ É filha bastarda do prefeito com uma antiga empregada que ele teve.

_ Porque você só está contando isso pra gente agora?

_ Talvez, se tivéssemos sido sinceros uns com os outros desde o início.

_ Nossa essa doeu no rosto. Mas foi merecida. _ disse o farsante arrependido. _ Mas porque vocês não denunciaram para a imprensa ou algo parecido? Provavelmente ele nem seria eleito.

_ Ele é muito poderoso. Provavelmente teria mandado matar todo mundo que soubesse dessa história, especialmente a mãe e a filha. Agora a acusação virá de longe e elas já fugiram da cidade à essa hora. Pensei em tudo depois de conversar com o delegado e ouvir a história de vocês. Chegou a hora de soltar a bomba e ver no que vai dar.

_ Não é muito, mas é um começo realmente. Provavelmente essa história será abafada, mas levantará suspeitas sobre o Prefeito. Quem sabe alguém acaba descobrindo alguma coisa?

_ Deve haver algum documento assinado no escritório da casa dele. Obviamente que nunca na Prefeitura, pois é um lugar onde circula muita gente.

O delegado Arruda interferiu:

_ É melhor que vocês não estejam pensando em invadir a casa de uma figura pública para vasculhar e roubar um documento que pode ou não estar lá... seria burrice e crime além disso.

_ Ninguém faria uma coisa dessas. _ disse Tomásio. _ Nem se fosse para salvar várias vidas inocentes de uma tragédia iminente.

_ Isso ainda não está comprovado.

_ Ah, pode confiar que vai acontecer, eu ouvi.

_ E como vocês vão entrar? Eu nem acredito que estou perguntando isso. Vão quebrar a janela.

_ Lógico que não. Eu fiz uma cópia das chaves da casa. Fiz moldes no sabonete. Não estava pensando em realmente usar, mas fiz no caso da gente precisar. Olha, até rimou! _ Respondeu Rufino.

O delegado pensou bastante, ponderou os prós e contras e por fim decidiu que aquela era uma contravenção que poderia lhe custar o emprego, mas seria por uma boa causa. Além do mais, se tudo desse errado não seria tão difícil prender todos eles de novo.

_ Tragam o documento assinado para mim que eu cuido do resto. Que droga! Não acredito que vocês fugiram enquanto eu dormia.

_ Foi culpa da Adália que te deu um sonífero. _ sugeriu Curió.

Rufino se virou para a morena e perguntou:

_ Podemos conversar agora?

Ela lhe deu um tapa na cara e logo em seguida um beijo na boca.

_Pronto. Foi uma boa conversa. _ disse ela com um sorriso nos lábios.

_ Quem sou eu para discordar! _ respondeu o golpista passando a mão no rosto com uma expressão que misturava surpresa e felicidade.

A moça aproveitou para deixar claro que aquela seria a última vez que ele faria aquilo, ou iriam terminar ali mesmo. O rapaz concordou, dizendo que na verdade já estavam ficando velhos e sem pique para continuar daquele jeito. Arrumaria um emprego, qualquer que fosse, desde que ficasse com ela. Curió e Tomásio ficariam por perto, fazendo o que lhes desse na telha. Exigir qualquer atitude da parte deles seria demais.

Desceram na próxima estação e de lá retornaram clandestinamente num trem de carga para Lajedos. Adália agora precisaria de uma nova identidade: seria a esposa de Rufino, a madame Cornélia Bulhões.

_ Você é bom com histórias e narrativas, deveria abrir uma companhia de teatro, disse Adália.

_ Não é uma má ideia. Eu gosto de interpretar personagens diferentes.



Precisavam agir rápido. Curió seria o encarregado de entrar sorrateiramente, pois sendo bastante racistas não perceberiam como alguém que se destoasse. Seria apenas mais um dos criados. Isso sem contar o fato de que ele era baixinho e magrelo, perfeito para atividades furtivas e pronto para se esconder em qualquer lugar. Rufino, Adália e Tomásio seriam a distração, convidando a família para um café na confeitaria, aproveitando para apresentar a mais nova integrante do círculo, que estava pessoalmente motivada por vingança pela injustiça com Dolores. O mulatinho demorou, mas eventualmente encontrou a prova do crime. Estava cuidadosamente escondida na gaveta esquerda da escrivaninha no escritório. Pegou o documento, dobrou e enfiou no bolso da calça. Entrou e saiu sem ser visto. Depois todos se encontraram na estação para ir embora. A mulher adorou a descarga de adrenalina que sentiu ao fazer parte da farsa, porém nunca admitiu. Essa experiência fez com que ela compreendesse melhor porque o seu amante havia escolhido aquele estilo de vida, mas continuo firme na decisão de levar uma vida honesta, apesar de saber que sempre sofreriam injustiças e perseguições pelos motivos mais variados. O quarteto seguiu um rumo indefinido após esses eventos, mas aprendeu uma importante lição: mantenha a humildade, porque sempre existe um peixe maior.

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