Conta um conto

terça-feira, 5 de março de 2024

Luiz Veredeiro, o tropeiro cantador

 Gabriel Oliveira, de origem humilde, dedicou praticamente toda a sua vida para deixar um legado onde seu filho Luiz não tivesse que enfrentar as mesmas dificuldades pelas quais ele passou. Para isso foi lentamente construindo sua tropa de mulas, viajando de sol a sol e guardando os excedentes no banco.



O menino, por sua vez cresceu admirando os violeiros locais e sonhava ser como eles. Vivia sempre rabiscando versos em pedaços de papel e sempre que podia aprendia algumas notas em violas emprestadas até conseguir comprar a sua própria. Sua musa inspiradora era a jovem Tamires, amor de infância que cresceu e se transformou em uma linda moça. Ela gostava de andar descalça e desfilava com a cabeleira negra e solta, uma flor vermelha atrás da orelha e um sorriso que fazia ele se esquecer de quaisquer problemas que porventura surgissem em sua vida. Ela foi o motivo de diversas composições que ele criou escondido dela e de seu pai, que certamente lhe daria uma bronca memorável se o visse pensando em algo não relacionado a cargas, rotas ou mulas. Assim o tempo foi passando e ele foi ficando cada vez melhor no dedilhar das cordas, até alcançar um nível de excelência aceitável. Arrumava sempre uma desculpa para sumir nos finais de semana e ia tocar nas festas das cidades vizinhas com o pseudônimo de Luiz Veredeiro. Começou a ganhar uma grana e juntou para finalmente comprar a sua própria viola, que deixava escondida num paiol perto da sua casa.

Se sentiu tão confiante que finalmente se declarou para Tamires na Quermesse anual. Se ajoelhou e disse tudo o que sentia por ela, segurando uma maçã do amor como se fosse uma rosa. Ela achou graça e disse que sentia o mesmo por ele, só estava esperando-o tomar uma atitude. A partir daí começaram a namorar. Não demorou muito para ele acabar contando o seu segredo para ela, que nunca teve problemas com essa vida dupla dele.

A fama de Luiz Veredeiro começou a crescer de tal maneira que o próprio prefeito de sua cidade começou a querer contratar o jovem, mas seu amor o ajudava atendendo o telefone como se fosse sua agente e sempre dizia que ele já estava com show marcado na data requerida. Ele sempre cantava usando um enorme chapéu de palha e a luz dos holofotes projetava uma sombra sobre o seu rosto, de modo que ninguém saberia descrever o seu rosto. Estava provisoriamente blindado pelo seu anonimato.



Foi então que chegou o tempo de seu pai se aposentar. O rapaz seguiu à risca todas as instruções que seu pai lhe dera durante todos os anos passados, tendo inclusive já o acompanhado em diversas viagens. Não se tratava de um serviço difícil, impossível ou inglório. Era somente algo que ele preferia não estar fazendo. Escondeu a viola na bagagem e partiu deixando um pai orgulhoso e uma namorada que se acabava em lágrimas.

Ia trotando devagar, desfrutando a paisagem e se deixava perder por ela. Aquele cenário tranquilo e abençoado o fazia refletir sobre muitas coisas em sua vida, especialmente sobre como ele era insignificante nesse mundão de meu Deus! Seus problemas eram praticamente nulos diante de toda aquela vastidão de terra, água, mato e céu! Respirou fundo o perfume amalgamado de flores com terra, fechou os olhos e sorriu, em paz com a própria sina.

De repente o som de um tiro cortou o silêncio, assustando as mulas e o próprio cantador, que não enxergava nada ao seu redor. Rapidamente conferiu e percebeu que nenhum animal foi ferido, nem mesmo ele. Ouviu em seguida um tropel de cavalos, que ficava cada vez mais alto. Era um bando de jagunços liderados pelo temido Salésio Matamorro, que tinha o hábito de saquear tropeiros para depois deixá-los à mercê da própria sorte. A tropa de mulas foi facilmente cercada, deixando Luiz sem opções de fuga ou represália.

Os cavaleiros foram abrindo caminho enquanto o chefe do bando se aproximava. Tinha a pele suja e uma barba desgrenhada que emendava com o seu cabelo, escondendo sua orelha. Os dentes eram amarelados como milho velho e o chapéu de couro em sua cabeça já estava bastante desgastado.

_ Qual é a sua graça? Nunca lhe vi por aqui. Eu me lembraria de alguém com essa pinta de frouxo. _ disse o homem com seu hálito de chorume velho.

Luiz estava paralisado de pavor, sua boca parecia colada e nenhuma palavra saía. Levantou as mãos, pedindo um tempo para se recobrar do susto.

_ Marinheiro de primeira viagem naufraga com qualquer marolinha.... Vai falar nada não? Prefere morrer sem ao menos ter contado a sua história? Se tem uma coisa que eu não gosto é de matar indigente. Pra mim é desperdício de bala.

Luiz finalmente conseguiu dizer alguma coisa:

_ Sou filho de Gabriel Oliveira, tropeiro que já andou muito por essas bandas.

_ Esse eu conheço. Homem bom, sempre deu bebida pra gente. Mas você não parece filho dele. Vai ver puxou a frouxidão da mãe.

Nesse momento todos do bando começaram a rir, a maioria por bajulação mesmo porque a piada nem era tão boa.

_ Eu tenho bebidas comigo. E posso tocar umas modas de viola se vocês quiserem. _ disse o cantador tentando amenizar o clima pesado ao seu redor.

_ ô chefe, até que uma musiquinha caía bem, né? A gente tá cansado, precisando de uma festinha. _ disse um dos jagunços que logo em seguida tomou um tiro do próprio Salésio.

O homem caiu do cavalo no mesmo instante, com um buraco onde era o seu rosto.

_ Alguém mais tem algo a dizer? Porque eu acabei de afiar o meu facão e estou doidinho pra usar_ gritou ele sorrindo com um certo sadismo.


Amarraram Luiz em uma árvore e levaram tudo. De repente um dos membros do bando achou a viola. Seu sangue gelou e um desespero tomou conta de todo o seu corpo. O que aconteceria a seguir iria marcá-lo mais profundamente que a queimadura da brasa mais quente. O instrumento foi espatifado contra um tronco de mangueira e depois os homens se revezaram para urinar em cima dos pedaços de madeira que agora estavam espalhados pelo chão. O seresteiro começou a chorar, como se tivesse perdido um ente querido. Aquilo era pior que morrer. Baixou a cabeça, fechou os olhos e estava pronto para entregar o seu espírito quando ouviu:

_ Um bosta desses nem dá gosto de matar. Vambora!

Depois disso ele perdeu a noção do tempo que passou ali. Sentiu sua alma dilacerada. Nada mais fazia sentido. Eventualmente foi encontrado por um homem que estava passando por aquela estrada de terra com sua carroça. Luiz foi encontrado inconsciente, desidratado e sofrendo efeitos de insolação. Acordou em uma enfermaria improvisada de uma cidade pequena, que ele nem sabia qual era. Aos poucos, foi se recordando do que aconteceu. Ficou com vergonha de encarar sua família depois daquilo porque seu pai tinha sacrificado uma vida para ele perder tudo em questão de minutos.

Em sua defesa, só podia afirmar que não tinha sido preparado para enfrentar aquele tipo de situação. Talvez fosse muito natural para todos os tropeiros, mas ele ficou seriamente traumatizado. Escreveu uma carta contando tudo o que havia acontecido e prometeu que manteria contato sempre. Se correspondia também com Tamires com bastante frequência e ela prometeu morar com ele assim que fosse possível.

Foi assim que ele recomeçou sua vida na cidadela de Rio Manso, trabalhando na venda do Seu Amâncio e dormindo nos fundos da mesma.

Foi nesse estabelecimento que acabou conhecendo o Brasa Doida, um cangaceiro baiano que havia abandonado sua vida de crimes e agora trabalhava como vaqueiro numa fazenda perto dali. Disse que tinha visto morte demais e estava cansado de tudo aquilo, especialmente de dormir sem saber se iria acordar para viver o dia seguinte. Acabaram ficando bastante amigos e o cantador aprendeu com ele vários tipos de luta e manejo de armas, com o propósito de autodefesa. Treinou pontaria até ficar realmente muito bom.


Apesar do treinamento de luta, não abandonou o lirismo e comprou uma nova viola. Luiz Veredeiro voltou a se apresentar e ganhar dinheiro fazendo shows em festas da Padroeira, batismos e casamentos. Comprou uma casa e começou a morar junto com Tamires.

Um bom tempo se passou até que o cantador recebeu uma carta dizendo que seu pai estava muito doente, nos seus últimos dias. Rapidamente ele montou em seu cavalo, passando pela mesma estrada onde tinha sofrido nas mãos dos jagunços. Será que os encontraria de novo? Precisava se lembrar de que não era mais o mesmo de antes. Estava amadurecido e sabia se defender. Então porque ainda sentia tanto medo? Muito tempo havia se passado, talvez a grande maioria estivesse agora envelhecida ou até mesmo morta, o que era mais provável.

Anoiteceu e ele acampou longe da estrada, sem fazer fogueira para não chamar atenção. De repente ouviu o barulho de passos. Ficou alerta e começou a suar frio. Assustado viu um vulto se aproximando e gritou:

_ Se apresente senão eu vou atirar! _ disse ele enquanto segurava tremendo a espingarda.

_ Oxe, se aperreie não, cabra. Sou eu. _ respondeu Brasa Doida. _ Vim lhe fazer companhia porque sei que essa travessia é difícil pra você.

_ Fico muito agradecido. Achei que estava confiante, mas nada treina a gente para a realidade, né? Estou aprendendo isso tudo do modo mais difícil.

_ Logo, logo você vai perceber que existem coisas muito mais importantes com que se preocupar. É só uma fase. Ande, dê um gole nessa cachaça que você vai ficar mais confiante e relaxado.

Luiz deu uma bebeu um pouco de aguardente e sentiu seu corpo mais relaxado, a cabeça leve. Dormiram revezando em turnos, para não serem surpreendidos.

No dia seguinte seguiram pela estrada, atentos a qualquer barulho ou movimento suspeito. De repente um tiro e o som do tropel de cavalos se aproximando. Apearam de suas montarias e se esconderam no mato, amarrando os equinos bem longe. Nesse instante os instintos do cangaceiro ficam aguçados e o mesmo age com uma naturalidade impressionante, mesmo que ele tenha ficado tanto tempo afastado. Se abaixaram e ficaram escondidos, aguardando para ver quem se aproximaria.

O cantador logo percebeu um rosto familiar: Salésio Matamorro apareceu em seu cavalo, mesmo visual, embora com menos dentes e uma barba mais grisalha. Estava acompanhado de alguns poucos jagunços que tinham sobrevivido até aquele momento. Ao invés de medo, agora ele sentia um ódio profundo, vontade de pular em sua garganta com uma faca e sangrá-lo sem piedade. O cangaceiro percebeu isso e disse:

_ Se plante que sua hora vai chegar.

Foi quando o inesperado aconteceu. O cavalo do mal encarado em questão deu uma empinada para trás, assustado por causa de uma jararaca. O velho foi então jogado para trás, sem ter tempo de pegar nas rédeas do animal e acabou caindo de costas no chão. Os outros jagunços tentaram atirar na cobra, mas ela estava camuflada pela relva, tornando difícil acertar de longe. Eles teriam que apear e arriscar tomar uma picada. Brasa Doida aproveitou a distração e eliminou com facilidade os jagunços que restavam pois estavam indecisos se atiravam no réptil ou se tentavam achar quem estava atirando neles. Virou-se para Luiz e disse:

_ Não estranhe de eu dizer isso, mas até que tava com um pouco de saudade desse pipocar de tiro.

_ Você não disse que estava cansado de ver morte?

_ Morte dos meus amigos. Cansado de matar tô não. _ respondeu ele sorrindo.

O cantador matou a cobra, atirando em sua cabeça. Depois foi andando devagar em direção a Salésio, que estava começando a recobrar os sentidos.

_ Alguém me ajuda a levantar! Gritou o jagunço, que ainda não tinha percebido que estava sozinho.

_ Você despedaçou um pedaço da minha alma naquele dia. Por muito tempo pensei na sua morte. Agora percebo que seria fácil demais para você.

Dizendo isso deu um tiro no joelho direito do velho, depois acertou o esquerdo. A arma de Salésio estava longe, atirada no capim, dando uma clara vantagem para Luiz.

_ Num vai morrer, mas também levantar num vai mais.

Atirou na mão esquerda e depois na direita. Para finalizar, urinou em seu rosto dizendo:

_ Agora vou para casa tranquilo. Se por acaso você sobreviver a isso e vier me achar. Pode ficar sossegado que estarei lhe esperando. E não irei ter a compaixão que tive agora.

Subiu em seu cavalo e foi embora sem olhar para trás, enquanto o seu antagonista esbravejava sozinho de dor e raiva no sertão vasto que o rodeava.

Quando o cantador chegou em casa, correu e encontrou seu pai deitado na cama do quarto. O baiano ficou aguardando do lado de fora, dando uma respeitosa privacidade aos familiares do seu amigo.

Luiz se ajoelhou chorando e pediu desculpas por não ter sido forte o bastante para resistir à primeira investida do bando de Salésio. O pai respondeu que estava feliz por ele ter sobrevivido e disse que ele era quem tinha que pedir desculpas por colocar ele num risco tão grande como aquele. O grande receio de Gabriel era que seu filho não tivesse com o que se sustentar, mas agora que ele estava fazendo sucesso como Luiz Veredeiro, estava em paz consigo mesmo. A pior coisa do mundo seria partir sem poder se redimir com o filho. Se abraçaram por um longo tempo e choraram bastante.

_ Como você sabia que eu era o cantador misterioso?

_ Oh, meu filho. Você nunca enganou ninguém daqui de casa. Sua mãe sempre brigou muito comigo para que eu parasse de insistir nesse ofício de tropeiro, dizendo que você já estava crescendo no seu próprio caminho, mas eu era teimoso como as minhas mulas. Sua mãe sempre foi mais sensível e percebeu que você era diferente. Ainda bem que tivemos a chance de esclarecer isso tudo antes da minha partida.



Luiz chorou bastante abraçado em sua mãe que também se acabava em lágrimas. Gabriel estava sereno, ciente do fim de sua travessia e deu o seu último suspiro em paz alguns dias depois. A mãe acabou se mudando com o seresteiro e o baiano para Rio Manso, onde o cantador finalmente se apresentou pela primeira vez sem precisar de esconder a sua identidade. Neste dia ele ficou muito emocionado e chegou até a sentir o ar mais leve, pois um peso enorme havia sido retirado dos seus ombros. Ao final do espetáculo, dedicou o mesmo a seu pai que provavelmente o estava assistindo junto com as estrelas do firmamento.

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