Conta um conto

quinta-feira, 7 de março de 2024

O menestrel e a moça do lago

 Bento Romão aprendeu o oficio de violeiro com o seu pai Cristino, que sempre enxergou aquela arte como meios para um fim. Nunca se importou em criar nada original. Cantava em troca de um prato de comida, algumas doses de pinga e dormia em qualquer lugar. A mãe da criança, sem condições de criar a mesma, abandonou o menino com ele e sumiu no mundo. Diante dessa situação ele não deixou de cuidar do rebento, mas nunca ofereceu um modelo de vida estável, pois vivia um tipo de vida extremamente desapegado.


O garoto cresceu e aprendeu rápido o mesmo ofício de seu pai, mas logo ficou entediado de tocar as mesmas modas todas as vezes. Não é que ele não as apreciava, mas o repertório ficou cansativo depois de tocado até a exaustão. O problema é que ele não sabia ler nem escrever partituras, tocava tudo de ouvido. Precisava de inspiração, novas melodias que elevassem o seu espírito, mas nada parecia surtir efeito.

Certa noite ele saiu do bar após ter tomado algumas doses de cachaça e resolver fazer uma caminhada com seu instrumento à tiracolo. Olhou o lago sob o efeito da lua cheia que parecia insuflar a água com sua essência de infinitude.

Ficou encantado e abriu um sorriso contemplativo e ficou perdido naquela visão quando algo ainda mais incrível aconteceu: bem ao longe, uma mulher descalça usando um vestido bege, cabelos negros como carvão e a pele branca como giz começou a caminhar lentamente para dentro da água, sem se despir e cantando uma belíssima canção que o desnorteou completamente. Perdeu completamente a noção do tempo. Não queria fechar os olhos, mas já estava bastante cansado e um pouco bêbado, então simplesmente caiu no chão desacordado. Acordou com um cachorro lambendo o seu rosto, enquanto ouvia as risadas do amigo Samuel:

_ Bebeu todas ontem, hein? Nem chegou em casa!

_ Rapaz, você não vai acreditar no que aconteceu comigo ontem! Deixa só eu tomar um café primeiro. Enquanto saboreava o mesmo acompanhado de um pão na chapa num boteco próximo, contou tudo o que tinha testemunhado, sem ser levado muito a sério. Foi então que ele reproduziu o canto da moça nas cordas do seu instrumento, chamando a atenção de todos os que estavam ao seu redor pela sua beleza. Bento estava feliz e ao mesmo tempo triste, pois tinha medo de um dia se esquecer de como tocar aquelas notas.

As outras modas que já conhecia eram de conhecimento popular e cedo ou tarde alguém se lembrava, então ele não precisava desse esforço extra para gravar em sua mente determinada música. Além do mais, aquela era especial. Precisava refinar os acordes torna-la o mais próximo possível da versão que tinha escutado. Começou a procurar por um compositor e depois de falar com muitas pessoas ficou sabendo que um professor de música aposentado morava numa cidade vizinha.

Pegou um cavalo e rapidamente em Xapuri, onde começou a perguntar por Anastácio Miraflores, que agora trabalhava como maestro para a banda de música da polícia. Conversaram bastante e quando ele repetiu a melodia o homem ficou bastante fascinado. Primeiro ele gravou a música numa partitura e depois pediu permissão para ensaiar com seus companheiros. Bento percebeu uma oportunidade de barganha e disse que consentiria se ele lhe ensinasse a ler e escrever as notas. Ficou um bom tempo morando com o seu novo amigo e absorvendo todo o conhecimento que ele poderia lhe proporcionar. Depois que já tinha aprendido tudo, o velho senhor lhe fez um último pedido:

_ Será que você poderia me levar para conhecer essa moça do lago? Sinto que meus dias na Terra estão chegando ao fim e seria incrível para mim ter essa última experiência.

_ Olha, não posso afirmar com certeza que ela estará lá, pois só a vi uma vez, mas não vejo problema em irmos juntos para esperar que ela venha. Quem sabe?

Voltaram para a cidade do menestrel e ficaram tomando umas pingas, esperando anoitecer. Não era noite de lua cheia, mas não custava tentar, talvez aquele fator fosse irrelevante. E era, pois a moça apareceu no lago para tomar o seu banho noturno. O problema é que o professor ficou tão fascinado que não conseguiu ser discreto e pulou na água desnudo atrás da dama, gritando por sua atenção.

O violeiro ficou desesperado com a reação da mulher porque talvez ela fosse um espírito de outro mundo bastante perigoso, mas na verdade ela era real e ficou bastante assustada. Saiu correndo e sumiu na escuridão. O maestro voltou frustrado para a sua cidade, mas agradecido pelo favor do amigo.

Bento ficou triste porque não sabia se veria aquela donzela novamente. Resolveu esperar pelo retorno da mesma, mas isso não aconteceu. Enquanto isso sua melodia nova fazia sucesso nos bares. Estava almoçando certa vez quando alguém lhe interrompeu, dizendo que já tinha ouvido antes aquela música que ele tocava. Disse que estava passando com sua carroça num bairro afastado quando ouviu essa mesma música vindo de uma casa. Não conseguiu distinguir quem era porque as janelas estavam todas fechadas.


O seresteiro pediu para ser levado naquela área para investigar e o estranho topou. Rodeou por um tempo e achou a residência em questão. Ficou sentado ali perto esperando que acontecesse alguma coisa, mas só encontrou um cachorro que soltaram atrás dele, pensando que fosse um ladrão procurando locais para invadir e roubar. Despistou o animal e retornou no dia seguinte, agora tomando coragem para bater na porta e ir a fundo naquele mistério. Mas o que ele perguntaria? “É aqui que mora uma donzela que canta e entra de roupas no lago?” Seria bem estranho. Provavelmente vão achar que ele seria um tipo de maluco tarado. Então ele teve a ideia de tocar a música no seu violão. Assim que Romão dedilhou as primeiras notas, percebeu a janela de madeira levemente se abrindo enquanto um vulto o observava dentro de um quarto escuro. Seria assustador se ele não soubesse que tinha decifrado uma forma de fazer contato.

_ Achei muito linda essa música. _ disse ele enquanto tocava. _ acabei pegando emprestado, espero que você não se incomode.

Ela não disse nada, mas também não fechou a janela.

_ Vou entender isso como um consentimento. _ Disse ele enquanto tocava. _ Você pode voltar a se banhar no lago, ninguém mais vai lhe aborrecer, tá bom? Eu só gostaria de poder ouvir você cantar mais. Você é muito linda e tem talento.

Assim que ele disse isso a janela se fechou rapidamente e Bento notou que tinha abusado do seu momento, porém precisava da oportunidade ímpar para deixar claro tudo o que queria dizer para ela. Não sabia se teria uma outra chance para fazer isso.

Os dias foram passando e o cantador ficava cada vez mais intrigado com aquela mulher. Não sabia dizer se estava apaixonado ou se era somente curiosidade. Tentou olhar ao redor da casa, para ver se achava alguma pista, mas tinha medo que o cachorro voltasse, então tinha que ser rápido. Por fim resolveu perguntar aos vizinhos, que não lhe disseram muita coisa. Pelo visto era uma senhora de idade que morava ali com a jovem cuja existência eles só sabiam por causa da cantoria. A idosa só saía de casa para fazer compras.

Era uma situação tão peculiar que já havia gerado vários boatos e até uma denúncia para a polícia de que a velha estava mantendo uma donzela em cativeiro. Uns diziam que era uma casa mal assombrada e o canto era de uma mulher que já havia morrido. Algumas crianças passavam e jogavam pedras nas janelas, gritando para o espectro aparecer. Depois saíam correndo quando ouviam qualquer tipo de barulho imprevisto, achando que era coisa do fantasma.

O cantador resolveu deixar a poeira baixar por um tempo e ficou sem tocar no assunto por bastante tempo. Esse elemento místico, misterioso era bacana e provavelmente querer esclarecer tudo acabaria destruindo aquela fantasia tão legal. Andava distraído na rua quando sentiu um dedo tocar no seu ombro. Virou-se e viu uma velhinha com uma expressão muito doce que perguntou:

_É você que andou por aí perguntando pela minha neta?

_ Não sei, talvez eu seja. Você está falando da moça que fica dentro de casa o dia inteiro?

_ Sim, essa mesma.

_ Eu só estava curioso, me desculpe se a incomodei. Eu a vi uma vez cantando à noite no lago e fiquei fascinado.

_ A voz dela é realmente muito bonita. _ concordou a idosa. _ Ela nasceu com uma grave alergia à luz solar, só pode receber doses bastante leves, mas ela gosta de se banhar no lago por isso sai à noite com uma certa frequência. Agora nem tanto por causa do tarado que avançou para cima dela pelado e gritando. Ficou com medo, sabe?

O rapaz nesse momento ficou bastante constrangido porque sabia que tinha uma grande parcela de culpa naquilo tudo.

_ Pois diga a ela que não tem mais com o que se preocupar. Eu já cuidei desse assunto e ele não irá retornar mais.

_ Como você pode ter certeza disso? É amigo seu?

_ Está mais para um colega de outra cidade. Ele não fez por mal. Não é má pessoa, apenas se empolgou, só isso. De qualquer forma isso já acabou e não acontecerá mais.

_ E porque você está tão interessado na minha neta voltar a se banhar, hein? Quais são as suas intenções com ela?

_ Nada demais, ela me inspira a compor músicas novas, só isso.

_ Quer namorar a minha neta? Está apaixonado?

_ Não sei. _ responde Romão incomodado com aquele interrogatório. Eu só queria poder conhece-la melhor, só isso. Achei ela muito doce e simpática. Não sou nenhum maluco que quer abusar do corpo da sua neta. Na verdade, nem o professor queria. Quer dizer, talvez quisesse, não posso responder por ele, mas eu sou muito respeitador.

_ Ah, então você quer namorar a minha neta.

_ Minha senhora, eu não disse nada disso. Por enquanto eu só quero ter a oportunidade de conversar com ela sem espantar, se for possível. Sinto que a companhia dela irá me render belíssimas composições. É só o que eu tenho a dizer por enquanto.

_ Gostei de você. E a pobrezinha realmente precisa conhecer outras pessoas além de mim. Afinal, alguém precisa cuidar dela depois que eu me for. É difícil para alguém nessa condição conhecer uma pessoa bacana.

Foi assim que o jovem seresteiro conseguiu o convite para a jovem Bianca e sua bastante protetora avó. Quanto mais íntimos ficavam, mais à vontade ela ficava para se soltar e cantar outras melodias igualmente belas. Eventualmente se casaram e a idosa pode partir com seu espírito em paz, sabendo que a sua querida neta estava em boas mãos. O jovem menestrel não teve problemas para se adaptar ao sedentarismo e finalmente alcançou condições para construir o lar que nunca teve.

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