Conta um conto

segunda-feira, 11 de março de 2024

Teatronáticos no sertão dos jagunços

O grupo mambembe Alvorada, cujos membros eram Irina, Beto, Elis, Giovanni e Lourival, além do cachorro Mascate viajava se apresentando em pequenos vilarejos. Não se sabe ao certo quando ou como se reuniram, mas a paixão pela arte dramática era a cola que os tinha juntado para não mais separar. Cada um tinha o seu gênero de peça e autor predileto, mas sempre acabavam entrando num acordo.

Iam juntando peças e adereços à medida que iam passando pelos diferentes lugares e os incorporavam em suas histórias de variados temas. Também recontavam as coisas que ouviam ao longo de suas viagens, enriquecendo assim o conteúdo do espetáculo.


Ocasionalmente as diferentes personalidades se chocavam, mas sempre acabavam alcançando o equilíbrio. Irina e Beto eram os mais maduros, casados e muitas vezes acabavam agindo como os monitores da trupe. Elis era romântica e sonhadora, apaixonada por Giovanni que era mulherengo e intempestivo enquanto Lourival era desligado de tudo, vivendo em seu infinito particular.

A trajetória do grupo começou a sair dos eixos quando o galanteador acabou se envolvendo com a filha de um enfezado fazendeiro, o Coronel Gaspar que não aceitou que sua adorada princesa fosse “desonrada por um vagabundo sem eira nem beira” e colocou seus capangas atrás do moço para cortar fora a sua masculinidade.

A trupe então enveredou por uma trilha inédita às pressas, torcendo para evitar o pior. Não sabiam se a sua singela carroça iria suportar a travessia por dentro do sertão pedregoso e cheio de curvas fechadas. O cavalo Asdrúbal trotava devagar, como quem pressentia que algo muito ruim estava prestes a acontecer. Quando escureceu eles resolveram fazer uma pausa para retomar o caminho no dia seguinte. A líder estava possessa:

_ Eu estou com vontade de te matar! Olha a confusão em que você nos meteu! Você não pensa para fazer as coisas, esse é o seu problema!

_ E como é que eu iria saber que o pai da moça iria reagir desse jeito? Não fiz nada que já não tivesse feito antes.

Lourival acordou confuso de sua soneca, sem entender o que estava acontecendo. Depois que explicaram ele só respondeu “Ah, tá” e voltou a dormir.

_ Não acho bom fazermos uma fogueira. Vai chamar atenção para nós. A gente nem sabe o que pode encontrar por aí. Vamos acender o lampião, só para não ficarmos no breu completo. _ aconselhou Beto.

Elis se enroscou numa coberta. Estava com frio, medo e fome. Por fim perguntou baixinho:

_Tem alguma coisa para comer?

Layla pegou uma cesta que tinha ovos e picles em conserva, geleia alguns pães e biscoitos. Comida que ganhavam nas cidades em que se apresentavam. Não costumavam levar frutas porque pereciam muito rápido. Comeram para dormir logo em seguida. Acordaram cercados pelo bando de jagunços chefiados por Totonho Pimenta. Estavam particularmente interessados nas duas mulheres, por motivos óbvios. Todos estavam muito assustados com exceção de Lourival que perguntou:

_ Se quiserem espetáculo, tem que esperar a gente acordar, tomar café, banho. Respeito é a base de tudo, minha gente.

_ Esse cara tá bêbado? _ perguntou um dos jagunços que achou graça no discurso do lesado.

_ Não, ele é assim mesmo. _ respondeu Giovanni. _ se bem que ele come uma pasta meio estranha, feita com cogumelos.

_ Mostra aí.

_ Eu não vou dividir com você. É muito difícil de achar e tá no fim do pote. _ respondeu o ator segurando o vidro contra o estômago.

Por fim Totonho falou alto e interrompendo aquela discussão inútil:

_Olha, não sabemos quem são vocês e não queremos matar ninguém, mas queremos os mantimentos e as mulheres, porque os meus compadres precisam se divertir um pouco.

Beto pensou rápido e disse:

_ Vocês estão mexendo com forças que desconhecem. Minha esposa é uma cigana e irá jogar uma praga em todos vocês. Ela domina as artes místicas e não gosta de se aborrecer. Teve um homem que duvidou e tentou se aproveitar dela. Seus dedos da mão apodreceram e o que tinha no meio das pernas também. Despencou igual fruta do pé que amadurece demais, sabe?

De fato, Irina se apresentava fazendo Tarô e Quiromancia. Tinha muitas tatuagens com símbolos de runas nos braços e nas pernas que reforçavam esse aspecto sobrenatural do seu personagem, além da bandana de seda. Ela olhou com olhar ameaçador para os homens armados, como se os desafiasse. Foi o bastante para que eles ficassem receosos e mantivessem distância. Totonho ponderou e por fim disse:

_ Então uma só vai ter que dar conta.

Pegaram Elis, amarraram as suas mãos e a jogaram na garupa de um dos cavalos. A pobre moça chorava muito, já imaginando o pior. Um dos jagunços gritou que queria provar a pasta do maluco, mas foi ignorado. Levaram também a comida e Asdrúbal, para compensar pelo fato de terem deixado a cigana para trás.

_ E agora a gente faz o quê? _ perguntou Giovanni, que estava se sentindo bastante culpado por tudo aquilo.

_ Agora a gente os segue e resgata a nossa amiga. _ respondeu Beto.

_ E como a gente vai fazer isso?

_ Utilizando as nossas melhores habilidades. Lourival, vamos precisar da sua pasta.

_Tá bom! _ respondeu o maluco contrariado. _ só estou fazendo isso pela Elis.

Chegaram ao acampamento do bando através do rastro que tinham deixado com os cavalos, o que não foi exatamente desafiador para o grupo. A garota estava presa em uma das tendas, isolada como uma iguaria que seria apreciada mais tarde, primeiro pelo chefe e depois pelo resto dos capangas.

O mulherengo achou o recipiente onde eles guardavam água para cozinhar e besuntou tudo com o creme alucinógeno de seu amigo, especialmente a comida. Aproveitou e batizou um pouco da pinga também. Depois foi para junto de seus amigos e aguardou escondido até a droga fazer efeito.

_ Poxa, não sobrou nada. _ lamentou Lourival ao ver o pote vazio.

_ É por uma boa causa, depois você faz mais. _ respondeu Irina consolando o companheiro. O cachorro apoiou a cabeça em seu colo, como se quisesse fazer o mesmo.

Os jagunços se alimentaram para logo em seguida começar a tomar cachaça e cantar modas antigas, comemorando o deleite que teriam mais tarde com a pobre moça. De repente começaram a ficar afetados pelos barulhos da mata. Todos os sons foram ampliados e todos sacaram as suas armas em estado de alerta.

Beto pegou o seu megafone, que antigamente era apenas um cone de metal com dois orifícios e gritou:

_ Vocês irritaram os espíritos do plano místico! Agora serão castigados por terem desafiado forças que desconhecem!

Os jagunços assustados começaram a atirar em direção ao escuro. Em seguida ouviram Mascate latir no instrumento. Aquele som alto e distorcido os deixou bastante assustados. Enquanto isso Irina procurava por sua amiga e acabou encontrando Totonho, que viu as tatuagens de ramos de oliveira nos braços da cigana criarem vida e avançarem em sua direção, como se quisessem enforcá-lo. Puxou seu revólver e ela se jogou no chão, mas ele atirou mesmo assim, pois continuava “sendo atacado”. Foi andando para trás até tropeçar e cair sentado numa fogueira, onde sua roupa começou a pegar fogo. Avançou gritando em direção aos seus subordinados, que enxergaram um demônio horrível soltando fogo pelas costas e acabaram descarregando a sua munição nele.

Giovanni usou um extenso lençol branco para pendurar na ponta de um bambu e agitar no escuro, enquanto Beto gritava ameaças no megafone. Lourival assistia tudo aquilo e ria sem parar, como se estivesse assistindo a uma peça de teatro. Sua risada era tão diferente que o chefe da trupe fez a mesma ressoar ampliada no acampamento, assustando ainda mais os bandidos agitados.

Depois de passar um bom tempo procurando, Irina acabou encontrando sua amiga e a libertou. Quando se aproximaram do trio, o primeiro a correr em seu encontro foi Giovanni, que estava muito preocupado com ela.

_ Tive muito medo de te perder. _ disse o rapaz chorando. _ você não faz ideia do quanto é importante para mim.

_ Sou? _ perguntou a moça confusa. _ importante em que sentido? Como uma irmã?

_ Não exatamente. Pelo menos espero que não. Não, definitivamente não.

_ Como assim?

_ Eu acho você muito atraente.

_ Mas? _ adiantou Elis, já prevendo que de alguma maneira seria rejeitada.

_ Mas eu não consigo me comprometer com uma mulher só. Pelo menos não ainda. Quero você na minha vida, mas ao mesmo tempo não quero te magoar. Se você quiser um lance casual a gente pode...

_ Não daria certo porque eu me conheço. Eu iria me apaixonar e sofrer quando você me abandonasse.

_ Se você mudar de ideia, quem sabe um dia?

_ Quem precisa mudar a cabeça é você, que enfiou a gente nessa confusão porque não consegue controlar o que tem dentro das calças. _ rebateu Irina que já estava cansada de ficar consertando a bagunça daquele Casanova.

_ Agora a gente vai para aonde? _ Questionou Lourival.

_ Agora vamos embora antes que o efeito da droga passe. Vamos pegar nosso cavalo e sumir na mata.

Pegaram Asdrúbal e depois de prendê-lo novamente na carroça, partiram em direção à cidade mais próxima. Viajaram durante a noite, ganhando assim tempo para se distanciar dos seus agressores. Eventualmente acharam mais cogumelos e passaram a fazer um estoque para emergências. Irina encostou a cabeça no ombro do marido e disse:

_ Ainda bem que escapamos com vida. Foi por muito pouco.

_Eles nunca tiveram chance contra nós. Nosso potencial de engenhosidade é superior a qualquer arsenal que possam criar.

A cigana sorriu, percebendo que foi obrigada a concordar com ele.

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