Conta um conto

segunda-feira, 1 de março de 2021

Datmo e a Ametista

 


Pouco se sabe sobre as origens do protagonista dessa história. Ele foi encontrado ainda bebê numa caverna isolada perto de uma montanha bem a leste do deserto de Honto. Foi encontrado pelo experiente beduíno Jharuz, que procurava um lugar para se abrigar do frio noturno. Percebeu que ele tinha uma estranha marca de nascença em seu ombro esquerdo, mas não pensou muito nisso. Como sua rotina era arriscada demais para crianças, resolveu levar o garoto para o mosteiro que havia nas redondezas, num vale recluso em meio a uma cordilheira. Ele os conhecia pois gostavam de comprar suas especiarias. Lá ele foi batizado de Datmo. Cresceu em paz, aprendeu a ler e ter disciplina, mas os monges ficaram igualmente intrigados com o sinal em seu corpo. Assim, quando atingiu a fase adulta foi encaminhado para o Templo Haybu de Treinamento para Jovens Guerreiros. 

A instalação era dividida em quatro blocos, referentes a 4 gemas, cada uma simbolizando os níveis de avanço dos alunos e suas conquistas. O primeiro nível é água marinha, onde eles dominariam a razão, em seguida cornalina para a força, citrino para o equilíbrio e finalmente ametista para a paz de espírito, pleno domínio de todas as técnicas aprendidas para se tornar um guerreiro completo. Os treinos diários eram bastante intensos, intercalados por muita meditação e leituras dos grandes mestres pensadores.  

Ao fim da primeira etapa realizavam um teste onde eram interrogados separadamente sobre uma série de assuntos discutindo moral, ética e raciocínio lógico. Os aprovados recebiam um pequeno grão de água marinha que era incrustado em seus medalhões. Na próxima fase, assim que chegavam cada um recebia um carneiro recém-nascido que eram obrigados a carregar nos ombros todos os dias, até os animais atingirem a vida adulta, para assim construírem sua força e resistência física. Ao final dessa etapa tinham que empurrar um imenso bloco de pedra e recebiam a pedra cornalina. A próxima fase envolvia lutas com bastões equilibrando-se em pontes de troncos estreitos e um pequeno citrino. 


O estilo Haybu de luta é mais centrado na defesa pessoal e meditação. A ideia é desacelerar mentalmente o tempo a ponto de antever os movimentos do adversário, observando tudo como se estivesse em câmera lenta. Dessa forma há uma economia de energia, defletindo ou redirecionando os golpes do seu adversário. Uma de suas bases é a proteção da linha central, que parte do topo da cabeça até chegar às partes baixas do corpo.  

Além disso, o enfoque na respiração proporciona benefícios físicos e psicológicos, como diminuição do cansaço, potencialização dos movimentos, aumento da autoconsciência e tranquilização. Vale acrescentar também que as gemas no medalhão permitem uma ampliação das habilidades do guerreiro, tornando o mesmo praticamente invencível e inatingível em todos os sentidos.  

Muitos alunos não completavam todos os estágios, sendo que muitos desistiam no meio do caminho e iam embora, afinal de contas suportar aquelas quatro provas exigia uma dedicação e disciplina que era extremamente rara, especialmente quando se tratava do último estágio, que era obviamente o mais difícil, exigindo um nível de concentração sobre-humano. O intuito é exatamente afunilar o processo e preservar apenas aqueles que são verdadeiramente merecedores. Datmo passou pelos três níveis com a ajuda de Nooji, seu mentor que também era praticamente uma figura paterna. Juntos eles debatiam todas as doutrinas do Templo, procurando sempre melhorar seus resultados com o passar dos dias.  

Haviam poucos guerreiros ametista e dificilmente surgiam novos, especialmente após o incidente com Hangul, um ex-aluno que alcançou o nível máximo, mas decidiu usar seu aprendizado para criar uma facção rival, o clã Tukyia. Dizem os rumores que ele infiltra espiões em Haybu para fazer os alunos desistirem de propósito e recrutá-los para a sua academia, mas ninguém nunca conseguiu provar isso.  

Estava Datmo certo dia meditando em seu quarto quando Nooji veio lhe pedir um favor. Queria que ele fosse receber a entrega dos mantimentos na porta do Templo, que era feita por uma moça muito bonita chamada Kayoro. Ele não sabia, mas já estava sendo testado, pois muitos alunos promissores já tinham perdido a cabeça por causa dela e desistido de tudo, especialmente após ela ter recusado a todas as investidas de seus admiradores. Sendo assim, ela já estava acostumada àquele ritual machista e só prosseguia com ele para ajudar seu pai, já que o Templo tinha essa cláusula de condicionalidade. 


Naquele dia, porém o rapaz surpreendeu a garota ao fazer muito pouco contato visual e limitou-se apenas ao que lhe foi pedido, sendo gentil, educado e extremamente formal. Aquele tipo de comportamento deixou seu mestre preocupado, acreditando que o seu pupilo talvez tivesse interesse em alguém do mesmo sexo. Tanto que levou essa questão aos seus superiores, tendo em vista que isso nunca tinha acontecido. Os anciãos por sua vez lhe repreenderam, dizendo que seu questionamento era preconceituoso exclusivamente pelo fato de o rapaz ter sido educado com ela. 

Kayoro também ficou intrigada com aquele comportamento incomum e isso fez com que ela pensasse cada vez mais em Datmo. Tanto que começou a arrumar desculpas para visitar o estabelecimento, buscando entender o que havia acontecido. Deveria estar aliviada de finalmente não ter sido assediada, mas a indiferença a incomodava bastante. Seu mentor também estava tão cismado que facilitou para a garota entrar escondida, afinal precisava ter certeza das verdadeiras intenções de seu aluno. 

Ver a garota dentro das instalações deixou o aprendiz bastante confuso. Por fim entendeu que estava sendo testado e isso deixou mais claro em sua cabeça que ele deveria evitá-la. Por outro lado, a ideia de evitar Kayoro fazia com que ele pensasse nela, prejudicando a sua concentração. 

As entradas clandestinas da garota também chamaram a atenção de Hangul, que ficou extremamente irritado com aquela mudança de paradigmas que eles haviam adotado, pois quando era membro ametista consagrado ele começou um relacionamento amoroso com uma mulher e a mesma foi assassinada por integrantes do Templo, pois ele supostamente estaria encorajando outros a fazerem o mesmo e desvirtuando os ideais da instituição. 


Os guerreiros do clã Tukiya resolveram invadir furtivamente, incendiando e matando vários professores e alunos. Datmo foi acordado no meio da noite por várias pessoas gritando e correndo enquanto as paredes e estátuas pegavam fogo. Estava no pavilhão ametista, onde havia poucas pessoas e todos conseguiram se salvar, mas ao chegar no pátio principal vislumbrou aquele cenário horrível que nunca mais abandonaria os seus pensamentos. Os poucos que conseguiram escapar dos prédios em chamas acabaram tendo as suas gargantas cortadas por pequenas foices que os membros rivais portavam, pois lá eles treinavam com variados instrumentos cortantes como espadas, adagas e foices. Foi um genocídio.  

Alguns investiram contra Datmo, mas foram facilmente desarmados por ele, que estava a um mês de fazer o seu teste final, onde ficaria preso em uma caverna para alcançar a transcendência e obter o máximo controle de sua energia espiritual.  Hangul ifoi atrás de Nooji,  pois tinha sido seu aluno e sentia-se particularmente traído por ele, afinal tinha sido encorajado a não negar seus sentimentos e aprender a lidar com eles, uma afirmação que foi dita com uma outra intenção pelo tutor. 

Mestre e aluno se reencontraram na praça, onde ambos já haviam compartilhado tantas risadas e lágrimas. Agora a mesma tinha se transformado num palco de ódio e intolerância, onde a oportunidade de diálogo já não se encontrava mais presente. 

_ Não pretendo uma luta justa, porque você obviamente foi o traidor nessa equação. _ disse Hangul sacando sua espada com um ódio visceral. _ Toda essa instituição decadente vai finalmente tombar hoje com você dentro dela! 

Nooji manteve a calma e replicou sem levantar a voz: 

_ Você obviamente está equivocado e eu não pretendo lutar com você. Nem hoje nem nunca. 

_ Seus alunos estão cientes dos jogos mentais que você arquiteta contra eles? 

_ Não sei do que você está falando. 

_ Não seja cínico! Todo mundo já percebeu a moça que você traz para desfilar nos portões do Templo. É obviamente um teste. Até aquele paspalho ali já percebeu. _ disse olhando para Datmo. _ Agora enfiar a mulher aqui dentro depois de toda a baixaria que aconteceu comigo é simplesmente inaceitável. 

_ Você está tirando conclusões precipitadas. Não há nenhum tipo de romance aqui. Nem haverá. 

Kayoro que até então estava escondida foi em sua direção e perguntou: 

_ Então qual foi o sentido de me trazer aqui para dentro? Achei que você estava me ajudando... 

Nesse momento todos, inclusive Datmo olharam para Nooji, que começou a suar frio sem saber o que responder. 

_ Finalmente a verdade veio à tona! _ disse Hangul saboreando a sua vitória. 

_ O que está acontecendo, mestre? _ Datmo perguntou se sentindo confuso e traído ao mesmo tempo. 

_ Simples. Ele estava encorajando vocês a ficarem juntos, mas ia mandar matar a moça caso isso acontecesse, não é? 

_ Quase isso. Eu só precisava saber como você estava lidando com os seus sentimentos, se havia atração e como você iria reagir a isso. 

_ Então você estava me usando como experimento? Você estava me encorajando e ao mesmo tempo torcendo para que eu fosse rejeitada? 

_ Sim, é basicamente isso. _ confessou Nooji.  

_ Você é nojento. _ disse ela cuspindo em sua cara e saindo logo em seguida. 

Hangul virou-se para Datmo e disse: 

_ Pensar na mulher que eu amo foi exatamente o que me fez suportar todo o tempo preso na caverna. Amar não é distração. Se feito da forma correta ele gera o efeito contrário. Esse cara não vai te ensinar mais nada, confie em mim. Se algum dia quiser vingança pelo derramamento de sangue que aconteceu aqui, sabe onde me encontrar. 

Olhou seu antigo mestre de cima a baixo uma última vez e saiu. 


 

Datmo precisou de um tempo para processar todas aquelas informações. A recente decepção com o seu tutor fez com que ele refletisse sobre tudo o que havia aprendido até então. Queria terminar a sua trajetória no templo e ganhar a ametista. Depois disso não tinha ideia do que faria. 

No dia seguinte houve um funeral coletivo de vários alunos e professores. O templo precisou fechar as suas portas para uma reforma física e espiritual. Nooji foi expulso e antes de sair disse ao seu ex-aluno: 

_ Eu só queria saber se você tinha achado ela atraente. 

_ Que diferença minha resposta iria fazer? 

_ O seu futuro é muito importante para mim. É essencial que você consiga aquela ametista. 

_ Tudo o que você precisava fazer era confiar, como eu confiei em você. 

_ De qualquer forma te desejo boa sorte. Eu abandonei tudo na minha vida para chegar onde estou e ontem a minha filha cuspiu na minha cara. Foi a pior derrota que já sofri e hoje nem sei mais para onde ir. 

_ Você usou a sua própria filha para me testar? Quem é você? 

_ Alguém que acreditou tanto nos ideais desse Templo a ponto de sacrificar o que fosse preciso. A ponto de nem mais me reconhecer no espelho. Eu fui tão inclinado a acreditar que... 

_ Não use o Templo para justificar os seus erros. Toda a ideologia aqui consiste em avaliar com calma as ações para escolher as melhores reações. Você sempre teve escolhas, os erros são seus. Viva e lide com as consequências deles. 

_ Hangul estava certo. Eu não preciso te ensinar mais nada. Dizendo isso virou-se e sumiu na estrada. 

Datmo retornou para Haybu e completou o seu treinamento. Dentro da caverna, o pensamento em Kayoro aqueceu o seu coração em meio à toda aquela frieza e escuridão. Quando saiu, finalmente ganhou a pedra que faltava em seu medalhão, mas sentiu que precisava aprender e compartilhar mais sobre a existência humana, suas paixões, contradições e desacertos. Se eventualmente encontrasse a filha de seu antigo mestre pelo caminho, certamente teriam muito o que conversar. 


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