Conta um conto

quarta-feira, 3 de março de 2021

A promessa de Adamastor

 

Adamastor sempre foi um rapaz bastante tímido, conheceu sua esposa Olívia num baile de Primavera quando ainda eram adolescentes em 1934. Ela estava sentada olhando em volta esperando que alguém a tirasse para dançar. Seus olhares se cruzaram por um breve momento e foi o bastante para que ficassem juntos para sempre. Nunca tiveram filhos, mas seu amor foi intenso por mais de cinco décadas, até o falecimento da mesma aos 85 anos. Ele que é três anos mais velho que sua amada não entendeu porque não partiu primeiro e foi obrigado a sofrer num mundo que tinha se tornado tão vazio e pálido sem ela.  No momento da despedida ela o fez prometer que derramaria suas cinzas na sua cidade natal, Itamboraba, de onde ela tinha saído quando criança e nunca retornado, embora tivesse muito carinho por aquela região. 

No momento da promessa, o apaixonado marido não sabia que a cidade ficava absurdamente longe de qualquer traço de civilização e como não tinha pressa de chegar, resolveu ir de carro. Planejou um itinerário com calma, usando mapas e bússola, pois era avesso a qualquer tipo de tecnologia. 


A viagem seguiu sem problemas durante boa parte do tempo, enquanto ainda havia estradas, estabelecimentos comerciais, pousadas e afins. Depois de um certo tempo começou a estrada de terra com mato por todos os lados, mas isso não abalou os seus ânimos, pois o motivo da viagem fazia ele se lembrar do quanto a amava. Sentado em seu automóvel ele foi se recordando de todos os momentos felizes de seu casamento, com sua cota de brigas fúteis que eram rapidamente superadas por uma piada ou besteira que ele porventura aprontava. Gostava de andar sempre alinhado e perfumado, com seu terno e chapéu de feltro preto, seu relógio de pulso com uma pulseira prateada que brilhava com a luz do sol enquanto ele segurava o volante. 

Depois de alguns quilômetros por aquela estrada deserta, as coisas começaram a ficar realmente estranhas. Adamastor era um policial aposentado e não abriu mão de levar sua arma no porta-luvas, só por precaução. Era outro traço de sua personalidade que ela tinha transformado nele. Sentia que devia demais por Olívia ter sido uma presença tão especial em sua vida e aquela promessa era o mínimo que ele poderia fazer depois que ela se foi. Era uma forma de se manterem conectados, uma despedida que ela pediu e sempre mereceu. Volta e meia olhava para a urna dela no banco do carona, presa pelo cinto de segurança, conversando como se ela estivesse ali ao seu lado. 

Uma estranha neblina começou a cobrir todo o terreno e ele reduziu a velocidade do seu carro. Começava a anoitecer e ele não percebeu nenhum sinal de vida ao seu redor. Mesmo planejando tudo com antecedência, aquilo definitivamente o surpreendeu. Parou o veículo no acostamento e preparou-se para dormir no banco de trás, tirando uma manta e um travesseiro do porta-malas. Não era o melhor lugar nem o momento para fazer isso, mas estava cansado e não tinha como prosseguir. 


Estava quase pegando no sono quando ouviu algo caminhando do lado de fora, como se estivesse rodeando o automóvel e o estudando. Tinha uma respiração ofegante e pesada, como um boi ou algo tão grande quanto. Olhou pelo vidro, mas não conseguiu distinguir nada. Só percebia algo se movendo inquieto do lado de fora que de repente parou e começou a grunhir muito alto, como se estivesse chamando seus companheiros para entender o que era aquilo parado à beira da estrada. Adamastor não era religioso, mas carregava sempre o terço de sua falecida esposa no bolso da calça. Ela insistia tanto que ele levasse no trabalho que acabou se tornando um hábito. Era lilás e tinha o perfume que ela adorava usar. Segurou com força e pediu a Deus para que aquelas coisas fossem embora e o deixassem dormir. Depois de sentir umas cabeçadas na lateral do carro, tudo ficou em silêncio e muito, muito escuro. 

No dia seguinte, quando acordou conseguiu ver pegadas fundas ao redor do carro. Não pareciam ser de qualquer bovino ou paquiderme que ele conhecia. O que tinha andado ali definitivamente não tinha cascos em suas patas. Procurou um bloco em sua mala e esboçou um rascunho de desenho para estudar melhor depois. Escreveu também tudo o que tinha acontecido com ele, começando uma espécie de diário de viagem, pois sua memória já não era a mesma de antigamente e tinha medo de se esquecer de tudo aquilo, o que era impossível, mas não improvável. 

A neblina não tinha ido embora. Ele comeu alguns biscoitos de aveia que estavam num pote e tomou um pouco de suco de caju em sua garrafa térmica. Nunca teve vontade de fumar ou beber álcool e isso não tinha nenhum fundamento moral. Simplesmente não via sentido ou necessidade. Gostava de ouvir jazz, bolero e blues. Tinha prazer em sentar-se em sua cadeira de balanço e sentir os primeiros raios de sol aquecendo sua careca enquanto ele lia o jornal tomando achocolatado. Depois ia para o jardim onde se deitava na rede com um bom livro e ocasionalmente parava para ouvir os passarinhos cantando ao seu redor. Andava muito de bicicleta com Olívia, mas depois que ela se foi ele não viu mais sentido em prosseguir sozinho. Deitou as duas magrelas na parede da garagem e elas ficaram grudadinhas juntando ferrugem, como duas almas entrelaçadas ao sabor do tempo. 


Tudo aquilo passou pela cabeça de Adamastor quando ele começou a avistar as primeiras casas de Itamboraba, um lugar definitivamente esquecido pelos mapas e pela História.  Desacelerou o carro e foi analisando tudo em volta, tentando compreender porque sua falecida esposa tinha tanto apreço por aquela região. Viu uma velha senhora agachada como uma sapa lavando roupas no rio. Ela levantou o rosto e o fitou com um olhar medonho, sem vida. 

O clima estava bastante frio e a neblina continuava. Avistou um boteco, aparentemente o único estabelecimento comercial por ali e resolveu ir ali para talvez tomar alguma coisa não alcoólica que o esquentasse. Não tinha muita esperança, mas não custava tentar. Afinal, que lugar não teria pelo menos um cafezinho ou um leite quente? 

O atendente tinha o mesmo olhar gelado e repulsivo da lavadora que ele tinha avistado na estrada: 

_ O que você está fazendo nessa região? _ Perguntou ele num tom nada amistoso. 

_ Primeiramente um bom dia para o senhor. Vim de longe para despejar as cinzas de minha finada esposa. Foi o último pedido dela, sabe? Só para confirmar, aqui é Itamboraba mesmo?  

_ O que você acha? 

_ Bom, eu vi uma placa enterrada num brejo aqui perto e é a primeira cidade que vejo em dias, depois de seguir reto por uma estrada de terra que parecia não ter fim. Enfim, estou precisando de algo quente para beber que não seja alcoólico. Pode ser um chá, leite ou até café. Esse frio está fazendo as minhas articulações doerem de uma forma que você não acredita..._ disse esboçando um sorriso e se esforçando para ser simpático em meio à toda aquela atmosfera pesada que o rodeava. 

_ Posso fazer um chá para você. Tenho folhas de laranjeira. 

_Ótimo. 

_ Mas você precisa tomar essa bebida, seguir com o desejo da sua esposa e ir embora o quanto antes. Isso não é um pedido nem um conselho. 

_ E essa neblina? Ela fica por aqui o tempo todo ou só nessa época do ano? 

_ Para que tanta pergunta? Você é jornalista? 

_ Não, sou um pobre policial aposentado a seu dispor. 

_ Não precisamos da sua gente por aqui. 

_ Aqui não tem policiais? Mas quem... 

_ Seu chá. _ Interrompeu ele secamente enquanto empurrava a xícara de maneira um tanto agressiva. 

Adamastor bebeu com uma certa insegurança, mesmo tendo visto o homem preparar o pedido na sua frente. Pagou, agradeceu e foi embora. Quando estava saindo do recinto ouviu: 

_ Saia antes do anoitecer! 

O velhinho percorreu a cidade inteira, procurando o melhor lugar para fazer a sua despedida. Enfim achou um riacho que corria em direção a um canteiro de flores e decidiu que ali era ideal. Pegou a urna, a beijou e foi despejando devagarinho as cinzas, enquanto lágrimas caíam de seus olhos. Pegou uma camisa, estendeu na grama ali perto e fez um piquenique. Deitou-se e ficou pensando em como tinham sido felizes juntos e como agora ele não tinha outra opção senão seguir sozinho. Se esqueceu do atendente rabugento e ficou horas pensando no sorriso de Olívia. Acabou adormecendo porque não percebeu como estava cansado da viagem. Acordou assustado e sua primeira visão foi o sol se pondo no horizonte. Enquanto caminhava em direção ao carro avistou ao longe uma estranha procissão com tochas, cânticos em uma língua estranha e uma mulher amordaçada, com as mãos atadas e caminhando empurrada por eles enquanto chorava. Embora seu instinto de sobrevivência dissesse para ele não se envolver e ir embora sem olhar para trás, resolveu ser policial uma última vez e investigar o que estava acontecendo. 


 

Seguiu o grupo à distância que caminhou por uma trilha durante algum tempo até chegarem num estranho altar cercado de obeliscos. Deitaram a mulher ali e um deles começou a entoar um cântico muito bizarro: 

_ Venha ó divino e ancestral Shudc'ba e possua o corpo dessa jovem! Reine sobre nós com toda a sua soberania! 

Os homens vestindo túnicas magenta entoaram gemidos estranhos enquanto agitavam os braços freneticamente. Um redemoinho escuro começou a se formar no céu enquanto um deles recitava uma espécie de rito escrito num livro:  

_ “Ph'nglui mglw'nafh Shudc'ba R'lyeh wgah'nagl fhtagn”  

Um tentáculo surgiu do buraco negro e grudou na cabeça da moça, que começou a irradiar luz pelos olhos e ouvidos até sua cabeça explodir. Um dos homens se virou para o outro e disse: 

_ Onde você encontrou essa mulher? Ela obviamente não era digna! 

Nesse momento o policial aposentado não resistiu. Sacou seu revólver e atirou em quantos membros da seita conseguiu, até ficar sem balas. Os sobreviventes vieram correndo com tochas enquanto ele corria e pensava: 

_ Devia ter atirado no livro! Devia ter atirado no livro! 

Foi então que ele começou a sentir uma dor muito forte em seu peito e o braço dormente. Aquele enfarto não poderia chegar em um momento mais apropriado. Tropeçou e caiu no chão, sentindo sua visão escurecer enquanto ouvia os passos de seus perseguidores. Abraçou a morte como quem finalmente recebeu uma visita há muito tempo esperada...      

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