Wilto e Maduk eram amigos desde a infância no vilarejo de Djauru, que ficava à oeste da Floresta dos Sussurros. Gostavam de ouvir as lendas populares sobre assombrações, criaturas míticas e monstros que eram vistos além dos limites das redondezas. Ouviam especialmente histórias assustadoras envolvendo a bruxa Meghadra, com seus olhos negros e dentes afiados como agulhas. Passaram boa parte de sua infância e adolescência cultivando um misto de medo e admiração por ela.
Na adolescência combinaram de visitar a cripta da mesma, localizada a sudoeste da cidade e rodeada por uma gigantesca plantação de milho, plantado estrategicamente para não atrair olhares curiosos. Na verdade, eles nem sabiam se estava realmente lá; planejavam, mas sempre acabavam adiando. Dos dois, Wilto era o mais interessado. Maduk preferia estudar mapas e ouvir relatos de aventuras distantes.
Muito tempo se passou e eles chegaram ao início da vida adulta, mas a determinação ainda não havia abandonado um deles. Numa noite de lua cheia, que brilhava tão intensamente a ponto de dispensar o uso de tochas, ele se cansou de esperar e partiu, não sem antes chamar aquele que considerava como um irmão. Maduk, muito a contragosto foi acompanhá-lo.
Caminharam por entre pés de milho que pareciam nunca terminar. Por fim chegaram em um jardim repleto de lápides e estátuas.
_ Acho que no final das contas era tudo história. Vamos voltar e tomar um vinho para celebrar o fim dessa história.
_Peraí, cara, deixa eu dar só mais uma olhada ali nos fundos, só para desencargo de consciência.
_ Está tarde, esse lugar é muito sinistro e eu estou cansado. Você sabe que eu só vim para te fazer companhia.
_ No fundo você sabe que quer chegar ao fim desse mistério. Qualé! A gente conversou sobre isso a vida inteira e agora que a gente chegou aqui você quer ir embora? Espera só mais um pouco, o que vai te custar?
Mais uma vez ele seguiu o amigo, mesmo sabendo que aquilo era uma péssima ideia. Por fim avistaram uma pequena cerca de pedras que cercava o que parecia ser um pequeno alojamento subterrâneo, com uma escadaria que se perdia na escuridão. Enquanto um deles obviamente celebrava, o outro ponderava:
_ Pois é, pena que não temos tochas para descer...
_ Não é problema, a gente improvisa.
_ Cara, que vontade é essa que você tem de fazer merda?
_ Como assim?
_ A gente já chegou, confirmou, agora vamos embora, por favor!
_ Pode ir, eu vou descer.
Maduk nem estava mais com medo. Estava com raiva da teimosia do seu amigo. Wilto criou uma tocha usando a própria camisa e acendeu numa vela solitária que estava ao pé de uma estátua. Ouviram um guincho assustador assim que desceram os degraus. O local era mais vasto do que parecia e um deles parecia estranhamente hipnotizado por tudo aquilo, enquanto o outro só queria ir embora. Um corredor enorme com várias portas se apresentava diante dos dois.
_ Tanto a descobrir.
_ Tantos motivos para ir embora.
Abriram a primeira porta à direita. Era uma espécie de Biblioteca, com duas estantes repletas de livros e jarros cheios de líquidos de cores diversas. Também havia uma mesa de madeira com algumas cadeiras e um livro aberto. Foi então que Maduk olhou para a porta e avistou o que parecia ser um vulto preto caminhando no corredor.
Assustado, deu alguns passos para trás. Acabou esbarrando na estante e derrubando alguns jarros em sua cabeça, formando uma espécie de argamassa grudenta que se misturou com o sangue dos cortes e foi escorrendo pela sua cabeça até preenchê-la por inteiro. O jovem assustado fazia força para se desvencilhar, mas não conseguia. A gosma fechou a sua boca e ele não conseguia nem gritar. Correu desesperado pelo corredor, mas estava tão desnorteado que em certo momento acabou abrindo uma porta e caiu num poço bastante profundo. Sentiu descargas elétricas percorrendo todo o seu corpo e tudo o que desejou naquele momento foi que aquele pesadelo terminasse. Foi o seu último pensamento antes de ficar inconsciente.
Acordou deitado na manhã seguinte, no alto de uma montanha, sem entender como tinha parado ali, com uma forte dor de cabeça e sentindo todo o seu corpo latejar. A pasta tinha misteriosamente saído de seu rosto, será que entrou pelos poros? Sentia muita sede. Correu em direção a um riacho que avistou perto de onde estava e enfiou a cara dentro, bebendo a água com o desespero de alguém que acabou de sair de um deserto. Era a ressaca mais estranha que ele já tivera, sem sombra de dúvidas. Depois percebeu que estava descalço, talvez tivesse perdido suas botas naquele poço imundo, do qual ele nem sabia como saiu. Será que tinha sonhado tudo aquilo? Não, tinha sido real até demais. De repente começou a ouvir uma estranha voz em sua cabeça:
_ Procure o Mestre Degarth. Ele vai te dar as respostas que você precisa.
_Mas quem é você? Não posso obedecer a alguém que nem conheço.
_ Confie em Degarth.
_ Mas eu nem sei onde estou.
_ Você está no topo do Monte Nieval. Siga a leste do riacho. Procure pela vila Fayki. Lá te darão informações sobre Degarth.
_ Não é mais fácil você me dizer onde ele está e eu ir atrás dele?
_ Como farei isso se você não sabe onde está?
_ Mas você sabe onde eu estou. Acabou de me falar.
_ Não me contradiga, apenas obedeça!
A dor de cabeça ficou mais forte, a ponto de Maduk nem conseguir raciocinar. Como estava sem muitas opções, resolveu seguir as instruções da voz estranha. Levou a manhã inteira para descer a montanha e por fim avistou o vilarejo. Estava exausto, com fome e sede, além dos pés machucados de tanto andar. Foi acolhido pela elfa Cerien, que o avistou de longe e teve compaixão. Lhe deu comida e água, mas não tinha calçados do seu tamanho. Perguntou pelo Mestre Degarth e ela disse que ninguém sabia dele há muito tempo, pois ele vivia isolado dentro da floresta Delzai, ao norte de Fayki.
Ele agradeceu e seguiu seu caminho, confuso com aquela quantidade de nomes que teve que aprender em tão pouco espaço de tempo. Sua vida era tão simples até ontem, quando ela tinha se tornado tão confusa? Tudo por causa de Wilto e suas obsessões idiotas. O pior é que ele nem sabia onde o seu amigo estava para poder xingá-lo.
Andou por uma trilha dentro da floresta até avistar um pequeno chalé ao lado de uma lagoa. Estava cansado e com os pés todos esfolados quando se apoiou numa árvore e ouviu:
_ Se tivesse demorado mais um minuto eu tinha desistido de você!
Maduk se preparou para xingar o velho, mas este o adiantou:
_ Mas não precisa se desculpar. Eu entendo e te perdoo. Só deixe de preguiça, tá bom?
Sem forças para retrucar, ele caiu ajoelhado no chão de barro.
_ Já disse que não precisa implorar, rapaz! Eu vou te ensinar tudo o que eu sei! Antes eu gostaria de te perguntar uma coisa: porque você entrou no poço de Byesi?
_ Eu não entrei em poço nenhum, eu caí. E como você sabe disso?
Eu tenho um cristal que fica imerso numa poção que eu criei especialmente para me avisar quando isso acontecesse e a natureza do espírito. Ontem ele brilhou duas vezes: uma luz clara e outra escura, ou seja, duas pessoas entraram nesse poço ontem. Eu tive fácil acesso à sua mente, o que significa que você foi a luz clara. Eu preciso te treinar para você me ajudar a combater o que quer que tenha entrado naquele poço ontem. Eu estou bem velho, não dou mais conta sozinho.
_ Como assim? Você não está dizendo coisa com coisa...
_ Você entrou no poço de Byesi durante a Lua Cheia. Querendo ou não você tem poderes agora.
_ Como assim poderes? Tipo poderes mágicos?
_ De certa forma sim. Você está sentindo seu corpo pulsando, não é?
_ Exato. Queimando por dentro, para ser mais exato. E uma forte dor de cabeça.
_ Vai demorar um pouco, mas vai passar. Sua vida anterior acabou. Agora você é uma outra pessoa. Precisa ter consciência do que irá se tornar para proteger aqueles que não são como nós. Amanhã treinamos. Agora deite que sua metamorfose leva tempo.
Deitou-se numa cama improvisada por Degarth e dormiu até o dia seguinte. Levantou se sentindo estranho e com muita fome. O mestre mago lhe saudou com um bom dia e disse que uma de suas habilidades adquiridas foi o teletransporte. Foi assim que ele caiu no poço e foi parar na montanha.
_ Seu inconsciente te salvou e me avisou ao mesmo tempo. _ completou ele. Sou telepata, então consegui me comunicar com você.
_ Eu posso fazer isso também?
_ Não, isso leva anos de prática e meditação. Talvez num futuro bem distante.
_ Se eu posso fazer teletransporte, porque não vim direto da montanha para cá?
_ Você precisa treinar bastante até poder fazer isso. E tem que visualizar o lugar para onde quer ir.
_ O que mais eu posso fazer?
_ Esse é um processo de tentativa e erro. Não tem manual. Acontece diferente para cada um. Eu só consigo sentir a natureza do espírito e o seu é nobre.
A partir daquele momento os dois se tornaram grandes amigos. Maduk leu toda a biblioteca de seu mestre e testou o que podia fazer. Conseguiu melhorar seu teletransporte e alguma telecinese, mas nada muito avançado. Degarth também lhe ensinou que um ritual de passagem seria ele construir o seu próprio cajado, com um cristal na ponta onde ele concentraria grande parte da sua energia. Para isso ele teria que meditar por uma noite inteira na floresta até encontrar a madeira ideal para criá-lo. Assim ele procedeu e nas primeiras horas da manhã ele se sentiu guiado para uma determinada árvore, cortou e esculpiu com facilidade, pois era filho de marceneiro. O cristal ganhou de presente de seu mestre. Transferindo energia ele aprendeu a criar um campo de força ao seu redor, o que era bem bacana. Com essa energia concentrada ele também aprendeu a disparar rajadas de luz usando o seu cajado. O cristal também mudava de cor caso alguém ou algo perigoso se aproximasse dele. Através dos livros de seu mestre Maduk aprendeu sobre poções e feitiços, mas não memorizou nenhum, por isso teve que anotar alguns mais importantes em diversos pergaminhos e os guardou numa bolsa tiracolo de couro, que comprou na cidade com algumas moedas emprestadas por Degarth.
As constantes viagens a vila Fayki permitiram que ele ficasse cada vez mais íntimo de Cerien, chegando a ter um relacionamento amoroso com ela apesar dos avisos de seu mestre que esse envolvimento poderia colocar pessoas inocentes em risco. Maduk nunca parou de estudar e treinar, sempre apurando suas habilidades, apesar de nada extraordinário acontecer ao seu redor. O clima começou a ficar tão pacato que ele finalmente relaxou. E obviamente foi nesse momento que o problema surgiu. Um homem surgiu correndo assustado, oriundo da cidade vizinha de Pangoth. Disse que pessoas e animais estavam sendo atacados e devorados por um lobisomem.
O aprendiz de feiticeiro nem sabia que tal criatura realmente existia. Tinha lido a respeito delas na biblioteca do seu mestre, mas nunca pensou que encontraria uma de perto. Seguiu viagem a pé e levou cerca de meio dia para chegar ao local. As cercas estavam derrubadas e havia sangue espalhado pelas paredes nas casas da periferia, além de entranhas espalhadas pela rua que exalavam um fedor inacreditável. Maduk sentiu fortes náuseas e por pouco não vomitou ali mesmo. Inalou uma essência de eucalipto que tinha em sua bolsa, sentou-se numa pedra e esperou anoitecer. Tinha apenas uma lâmina de prata, mas acreditava que pelo menos conseguiria assustar a criatura o suficiente para ela não retornar.
Já estava bem escuro quando ela chegou. O feiticeiro pensou que ouviria uivos ou rugidos anunciando sua chegada, mas ela veio silenciosa. A única coisa que ele percebeu foram seus dois olhos vermelhos enormes se aproximando cada vez mais. Mais inesperado foi quando ele ouviu uma voz gutural no meio daquele breu:
_ Eu esperei muito tempo para te reencontrar! Agora você vai pagar por sua covardia!
A criatura saltou sobre ele, maior do que ele tinha imaginado. Maduk foi surpreendido por aquela voz e a princípio ficou sem reação.
_ Você obviamente está me confundindo, porque eu nunca abandonei ninguém. Disse ele enquanto segurava o pescoço do lobisomem com as duas mãos.
_ Você me largou naquela cripta para morrer! Ela estava certa a seu respeito! Você é fraco e medroso! Seres inferiores como você não merecem respirar o mesmo ar que eu! _ Dizendo isso pegou ele pelo colarinho e o atirou em direção à uma parede ali perto.
Maduk sentiu uma forte pancada nas costas e caiu sentado, mas não desmaiou. Só então percebeu que seu amigo havia se transformado naquele ser grotesco que tinha quase três metros de altura e falava babando sangue. Seu único impulso no momento foi chamar o seu cajado com a telecinese e criar um escudo de proteção. Afinal de contas, apesar de tudo seu amigo de certa forma ainda estava dentro daquela criatura. Ele tinha que pelo menos tentar...
_ Escudo de força? Onde você aprendeu isso? Não importa. Hoje é a sua última noite. Você não vai segurar isso por muito tempo...
_ Wilto, por favor me escute. Somos amigos de infância. Você me conhece. Sabe que eu nunca faria isso com você...
_ Sabia que ela sempre esteve nos observando o tempo todo? Ela te conhece melhor do que eu. Conhece todas as suas mentiras e covardias...Ela viu tudo em seu cristal...
_ De quem você está falando?
_ Você sabe exatamente de quem estou falando? Estou falando da...
Não terminou a frase porque um dos moradores da cidade se aproveitou que ele estava distraído para atirar a lâmina de prata no seu olho, provavelmente um dos fazendeiros que tinha perdido muitos animais e fazia questão de assistir ele morrer. Deu um urro de dor, arrancou a lâmina do olho e disse para Maduk:
_ Está vendo? Até esse verme tem mais coragem que você! _ E dizendo isso saltou em direção ao morador.
O aprendiz de feiticeiro lançou uma rajada de luz no peito da criatura antes que ela chegasse ao chão. Aproximou-se do corpo inconsciente do lobisomem e derramou uma forte dose de sedativo em sua boca. Depois disso o arrastou para Fayki, onde Degarth o despachou para um ponto isolado no mapa.
_ Me ensina a fazer isso! Disse Maduk impressionado.
_
Você ainda tem muito mais coisas a aprender antes disso. Agora vamos
tomar um chá. Você precisa retomar suas forças, porque pelo que você me
contou, seus problemas estão apenas começando...
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