Conta um conto

quinta-feira, 6 de maio de 2021

O estranho destino de Sávio Cacaulo

 

A vida de Sávio Tales Cacaulo sempre foi repleta de dificuldades. Filho de pai violento e mãe alcoólatra, estava sempre cercado de medo. Essa sensação permeava o seu cotidiano, desde o levantar da cama até a hora de dormir. Com seu corpo franzino durante a infância, tudo era uma ameaça ou gatilho para apanhar, especialmente em casa. A mera iminência de perigo fazia com que ele suasse frio e tremesse compulsivamente.  

Com o tempo foi crescendo e decidiu que não queria mais se sentir assim. Queria ser temido e isso começou na adolescência, quando premeditou para que seu pai caísse da escada e ficasse inválido. Para isso, besuntou a mesma com azeite e cera, enquanto a mãe tinha saído para fazer as compras e antes dele sair para a escola. Ele sabia que o pai tinha costume de se atrasar para pegar o ônibus para o trabalho e sempre descia as escadas numa velocidade incrível. Sávio só precisava esperar o dia certo. E foi o que ele fez. Os hematomas por todo o seu corpo não lhe deixaram hesitar em fazer isso. O estrago no corpo de seu pai foi tão grande quanto ele imaginava. Por muito pouco ele não morreu. 

A sua grande surpresa foi que seu pai continuava ameaçador, mesmo na cadeira de rodas. Como isso era possível? Simples, o trauma psicológico já estava feito. Daí surgiu a inspiração para a faculdade que faria quando saísse do ensino médio. De preferência em outra cidade. Finalmente longe de seus pais, tomou duas decisões: ler e malhar muito, para se tornar intimidador nos dois sentidos. Ficou obcecado com a ideia de infligir medo e como essa sensação neutralizava qualquer adversário, sem a necessidade de confronto físico. Obviamente curtia muito os quadrinhos do Batman, mas achava o vilão Espantalho muito mais fascinante, já que se identificava com Jonathan Crane. 

Certo dia ele ficou sabendo que uma garota muito atraente de seu curso estava namorando um estudante de Comunicação que estava começando um canal no Youtube de investigação sobrenatural. Aquilo era tudo o que ele precisava para fazer o seu laboratório sem despertar suspeitas. Cobaias querendo sentir medo ou inflados de uma coragem vazia? Não importava! Faria eles se arrependerem de ter tido aquela ideia cretina. Especialmente porque em sua opinião toda essa crença em forças ocultas e perigos do desconhecido era uma bobagem sem tamanho, então não haveria risco algum para ele. Sua missão pessoal tornou-se criar a fantasia mais assustadora que conseguisse imaginar, além de localizar uma casa abandonada nas redondezas que ainda não tivesse sido ocupada por mendigos ou usuários de drogas. Depois de um bom tempo procurando, finalmente achou um casebre na zona rural que ainda não tinha sido explorado. Certificou-se disso acompanhando os vídeos de suas futuras vítimas. 

Seu disfarce assustador foi confeccionado nos mínimos detalhes: uma máscara horrível de látex branca que foi retocada com pincel e uma batina preta com capuz, além de um tridente que achou numa fantasia de Aquaman que estava à venda.  Depois disso, foi para a localidade, acendeu umas velas no chão da casa e começou a fazer muito barulho, para chamar a atenção dos vizinhos. 

Sua primeira vítima foi um cachorro que estava passando por ali e foi atraído pela confusão. Correu latindo sem parar, mas ficou assustado por não entender o que estava acontecendo e fugiu desconfiado. Sávio soltou uma gargalhada, sorvendo aquele pequeno sucesso de sua empreitada, mas precisava de mais, muito mais!  

Foi para casa e pesquisou por barulhos estranhos, que fizesse qualquer um correr assim que ouvisse. Achou um apito numa loja de caça e pesca e fez algumas modificações para que o som saísse abafado, quase um suspiro de lamento na calada da noite. Todo esse preparo o deixava sexualmente excitado. Não era mais apenas diversão, estudo ou mera trolagem. Era como se ele estivesse de alguma forma devolvendo todo aquele abuso que lhe tinha sido imposto na infância e isso o deixava num êxtase indescritível. 

Começou a andar pelas redondezas fantasiado e fazendo aquele ruído infernal, correndo, dançando e acendendo velas na casa, chegando até mesmo a acender uma fogueira, matar uma galinha e espalhar seu sangue por todas as paredes externas da casa. Comprou carne de porco num açougue e jogou em seu interior, para que a mesma apodrecesse e o seu cheiro chamasse a atenção. Comprou um livro de ocultismo e utilizou o mesmo sangue da galinha para desenhar um monte de símbolos nas paredes internas do recinto. 

Depois de um certo tempo os seus esforços geraram resultado, pois os comentários da população local atraíram a atenção da mídia, da polícia e de youtubers interessados em estudar o fenômeno instaurado ali. Sávio ficava muito empolgado ao ver toda aquela atenção, seus olhos ficavam injetados com um estranho sorriso na boca. 

Foi então que o dia tão aguardado aconteceu: o anúncio da visita de sua “cobaia” ao local que ele tinha preparado com tanto carinho para recebê-lo. De certa forma, estava lhe fazendo um favor, uma oportunidade de fama que ele nunca imaginaria ter. Sua figura assustadora seria vista por milhares de internautas e aquele pensamento lhe deixava com uma ereção nas calças. 

Chegou bem cedo e preparou o cenário como se fosse a noite de estreia de uma peça de teatro. Sentou-se num banquinho de madeira e esperou. Quando ouviu o carro chegando, foi para os fundos da casa e soprou o apito. Ouviu a equipe gritando e pensando em ir embora. Sua boca abriu um sorriso maquiavélico. Quando percebeu uma lanterna avançando, jogou uma xícara na parede. Gritos de susto. As luzes recuaram e depois voltaram a seguir em sua direção. Era uma dança e ele estava apenas começando. Deu um chute forte numa porta e todos os investigadores saíram correndo em direção ao carro, mas ele não queria que eles fossem embora então parou por um momento. O líder do grupo que queria impressionar resolveu retornar sozinho. Agora era a cereja do bolo. O momento pelo qual ele tinha esperado tanto. Ficou em pé no corredor central e esperou em pé, sem fazer nenhum barulho. Sentiu a lanterna o iluminar por alguns segundos, mas aquilo foi o bastante para o jovem soltar o grito de pânico mais alto que ele já tinha ouvido em sua vida. Aquela atenção foi o bastante para deixar os seus olhos injetados de prazer, o que acabou por torná-lo ainda mais assustador. Todos entraram correndo no carro e aceleraram numa velocidade inacreditável. Missão cumprida, mas algo aconteceu que ele não esperava. Ficou viciado naquele sentimento. Precisava repetir aquilo mais vezes. Aperfeiçoar aquela técnica. Porém, quando foi dormir aquela noite teve a estranha sensação de ter sido seguido, mas não se importou porque estava saboreando o sucesso da sua performance. 

O vídeo obviamente foi um grande sucesso e o rapaz obviamente se prontificou a retornar, obrigando Sávio a intensificar seu espetáculo. Enquanto folheava o livro de ocultismo pra memorizar alguns cânticos ou palavras, percebeu a luz do banheiro acender sozinha. Provavelmente era algum problema na fiação ou na lâmpada, pensou ele prontamente. Achou uns salmos em sânscrito e recitou em voz alta, sem saber o que significavam, mas a sonoridade era bacana e ele só precisava repeti-los em uma tonalidade mais grave. Escreveu num caderno para memorizar, apagou as luzes e foi dormir. Pelo menos essa era a sua intenção, pois durante a madrugada foi acordado por barulho de passos no corredor. Por diversas vezes se levantou e não encontrou ninguém na casa. Mas não se abalou.  

Na noite seguinte resolveu ignorar os barulhos e conseguiu dormir, mas teve pesadelos terríveis, além da sensação de ter alguém cochichando coisas ininteligíveis no seu ouvido. Decidiu que estava pensando demais naquela intenção de assustar e todas aquelas ideias estavam mexendo com a sua cabeça. Resolveu deixar quieto por um tempo e se concentrar na faculdade.  

Os dias foram passando e os fenômenos foram ficando mais estranhos. Alguns cômodos pareciam mais frios que outros, portas batendo, luzes se acendendo sozinhas e os barulhos de passos durante a madrugada. Cético que era, se recusou a pensar em qualquer alternativa que não pudesse ser racionalizada e resolveu simplesmente conviver com isso. Era vento, vizinho, fiação, qualquer coisa. Não iria cogitar nada fantástico ou extraordinário.  


Estava determinado. Tanto que resolveu prosseguir com o seu projeto de memorizar as palavras do livro. E para isso as proferiu em voz alta repetidas vezes, cada vez mais alto. De repente todas as luzes da casa se apagaram ao mesmo tempo. Sávio caminhou no escuro procurando por velas ou a chave para ligar a energia de volta quando ouviu as mesmas palavras, agora ditas por uma voz gutural e soturna, que obviamente não era a sua. Nesse momento ele ficou preocupado, mas mesmo assim achou que havia um assaltante em sua casa. Resolveu gritar com voz ameaçadora: 

_ Eu estou armado e vou chamar a polícia! 

A voz gutural soltou uma gargalhada e começou a falar um monte de coisas ininteligíveis, que o deixaram ainda mais apreensivo. Seus olhos começaram a se acostumar com a escuridão e ele finalmente percebeu uma silhueta enorme em sua sala que começou a caminhar em sua direção. Sávio sentiu suas pernas presas ao chão. Estava indefeso, imóvel. Percebeu aquele sentimento tão familiar em sua infância. Estava com medo novamente, depois de muito tempo. 

A polícia encontrou o seu cadáver na manhã seguinte, sentado no chão, abraçando as pernas com os olhos completamente negros e arregalados, além da boca arreganhada numa expressão de pavor que intrigou todos os legistas que o inspecionaram. O fato é que ele finalmente foi alcançado e consumido por aquilo que o acompanhava desde a infância, causando admiração e repulsa ao mesmo tempo. 

 

      

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