Conta um conto

terça-feira, 18 de maio de 2021

Kalel, Maribel e a Praça

 


A praça Alfredo Tobias nunca foi um espaço realmente significativo para os moradores da pacata Cavinópolis. Um espaço de terra discreto, nem grande nem pequeno, com alguns bancos de madeira e canteiros de flores. Naquele local o músico Kalel (sim, o seu pai era muito fã de Superman) levava o seu violão e tocava diversas músicas conhecidas no repertório nacional, na esperança de ganhar alguns trocados enquanto praticava para se tornar cada vez melhor e assim talvez ganhar públicos cada vez maiores na capital. Gostava muito de MPB e samba de raiz, mas quando estava mais precisado de dinheiro tocava sertanejo universitário e pagode, mais conhecidas do público. Se gabava de ser eclético e versátil e assim sentia que um dia o seu esforço seria recompensado. Não pensava tanto em fama ou dinheiro, mas sim na interação com os ouvintes, poder compor e dividir a sua arte, sentir a galera cantando as grandes multidões cantando as músicas que até então só estavam em sua cabeça. 

Assim passava os dias, sonhando e dedilhando o seu instrumento na esperança de dias melhores, quando certa vez foi interrompido por um falatório no outro lado daquele cantinho que ele tinha carinhosamente “tomado” como seu. Era a apaixonada Maribel, uma estudante de artes cênicas que resolveu adotar um pedaço daquele lote como palco para as suas declamações. Ela devorava todas as grandes peças já escritas e se emocionava com todas elas. Sentia nas veias que aquela era a sua grande vocação. Encarnava todos os seus papéis com uma dedicação impressionante, chegando a interpretar mais de um, alternando a postura e a tonalidade da voz quando lhe era demandado.


 

 A primeira impressão do músico, porém, foi a de uma maluca que resolveu se instalar no seu “local de trabalho” gritando e agitando os braços. Foi em direção à moça na tentativa de entender o que estava acontecendo e talvez resolver a situação sem confrontos, o que ele odiava, mas tudo o que ela viu foi a oportunidade de encontrar alguém para contracenar. Dessa forma, o diálogo saiu mais ou menos assim: 

_ Com licença, meu nome é Kalel e eu costumo tocar violão todos os dias naquele canto ali. _ disse o rapaz apontando para o local onde ficava de domingo a domingo. 

_ Você ouviu isso, majestade? Temos um bardo para a nossa corte! Diga me, nobre menestrel, o senhor toca o seu alaúde há muito tempo? Nosso rei é bastante exigente, ele pode pedir a sua execução se você desafinar. 

_ Alaúde e violão são dois instrumentos completamente diferentes, que história é essa, sua doida? 

_ Doido é você de pisar no palácio real sem permissão. Se não fosse o seu alaúde provavelmente estaria no fosso agora, sofrendo incontáveis torturas por sua insolência. 

_ Que papo aranha é esse? É além da imaginação essa porra? Eu só quero combinar pacificamente dias e horários, para a gente não atrapalhar as performances um do outro, pode ser? 

_ Sua arrogância será o seu fim, herege! Os guardas irão te levar para as feras, que se deliciarão com a sua carne fresca! 

_Olha, geralmente eu sou muito calmo, mas você está me tirando do sério! 

_ E o que você vai fazer? Vai estuprar e violar uma serva real indefesa só porque ela estava te recebendo na corte real? É assim que você se comporta, como um animal? 

Nesse ponto ela começou a falar mais alto e acabou chamando a atenção de muitos transeuntes, que pararam para ouvir aquela discussão. O encabulado músico se virou para eles e tentou se explicar: 

_ Olha, não é nada disso que vocês estão pensando. Eu estava ali tocando em paz e... 

_ Confessou! Confessou que estava se masturbando depois de vislumbrar as minhas coxas torneadas com pele de alabastro! 

_Tocando música, sua doida! Olha gente, eu nem conheço essa mulher... 

_ Ele é um pervertido que usa sua música para seduzir e enfeitiçar pobres garotas como eu. 

_ Eu não faço isso. 

_ Você não gosta quando uma garota fica encantada pela sua arte? 

_ Sim, mas isso não tem nada a ver. 

_ Então você quer, só não consegue. 

A multidão bateu palmas. Ele não estava entendendo mais nada. A atriz se deliciava cada vez mais com a plateia que só crescia: 

_ Então fica curvado numa moita se masturbando, acariciando suas carnes nojentas e babando como um depravado solitário! 

_ O quê? Não! Gente, ela é doida. Eu não faço nada disso. 

Kalel estava cada vez mais desesperado, pois só ele não entendia que estava participando de uma peça de teatro contra a própria vontade. A própria multidão não estava levando a sério, pois as atitudes da moça eram caricatas e exageradas demais para serem verídicas. Isso explica porque algumas pessoas se sentiram encorajadas a participar, gritando insultos ao pobre rapaz: 

_ Você é um nojento! Deveria ter vergonha de si mesmo! Só porque a moça está descalça e de shortinhos você acha que pode comer ela com os olhos, seu machista! 

A pressão do músico baixou. Ele sentiu uma leve tonteira e vontade de sair correndo, pois percebeu que não iria conseguir se explicar para toda aquela gente. Maribel então resolveu terminar e gritou: 

_ Alguém por favor arruma um copo dágua que ele vai desmaiar! 

Depois de o ajudar a se sentar, ela finalmente se apresentou: 

_Prazer, sou Maribel, atriz performática. Hoje foi legal, né? Apareceu muita gente. Eu entendo que deve ter sido um choque para você, que obviamente não está acostumado. 

_ Que porra foi isso que acabou de acontecer? 

_ Uma peça improvisada, sem redes de proteção. Acho que o próprio público acabou entrando na brincadeira, com aquele cara gritando e tal. 

_ Eu quase desmaiei com medo de ser linchado e era tudo encenação? 

_ Foi bem real, né? Eu senti nas veias! 

_ Você é totalmente maluca! 

_ Não mesmo. Estou completamente ciente de minhas faculdades mentais. 

_ Você não arrasta qualquer um para esse circo de maluquices. Isso não se faz! Deve ser combinado! 

_ Mas assim ficou mais autêntico, achei que você como colega artista entenderia. 

_ Eu fiquei completamente confuso. 

_ Porque você é travado demais. Precisa abraçar o imprevisível para alcançar o intangencial. 

_ Eu respeito muito a sua arte, mas só quero ficar no meu cantinho tocando a minha música. 

-Eu não vou a lugar nenhum e vou continuar mexendo contigo, então deixa de ser bobo e aproveita essa nova fase da sua vida. 

_ Que nova fase? 

Ela não respondeu. Só partiu sem dizer nada. Kalel continuava sem entender nada. Tinha achado ela realmente muito atraente, mas a conversa toda saiu tão atravessada que ele não sabia o que pensar. Sua vida tinha acabado de levar uma estranha sacudida e ele não sabia ainda se tinha gostado daquilo ou não. De qualquer forma, não via muitas alternativas de escapar daquele confronto, então resolveu continuar frequentando a praça, evitando a moça, o que era praticamente inevitável, pois mesmo que ele não fosse até ela, Maribel arrumava alguma maneira de “importuná-lo”. E com o tempo ele foi se acostumando a gostar dessa dinâmica. Era quase uma terapia, pois ele se sentia à vontade para falar bobagem, desabafar e expurgar seus demônios interiores. E devia tudo isso àquela moça que entrou em seu coração metendo o pé descalço na porta, falando alto e agitando os braços. 


Com o passar dos dias, foram ficando mais íntimos, almoçavam juntos, trocavam mensagens à noite antes de dormir e faziam programas que não incluíam a praça. Mas Kalel ainda estava em dúvida sobre o relacionamento deles. Estava apaixonado, mas tinha medo de perder a amizade dela caso se declarasse. Foi então que um dia eles estavam sentados na praça quando ele disse: 

_ Sabe, eu aprendi a gostar bastante das nossas falsas discussões, mas sinto falta de tocar o meu violão. 

_ Entendo. Mas você pode fazer isso em casa, né? 

_ Não é a mesma coisa. Eu quero audiência, assim como você. 

Ela saiu sem falar nada. Sumiu por alguns dias. Ele não entendeu nada. Chegou a ficar preocupado. Mandou mensagens e ela não respondeu. O que tinha acontecido? Ele tinha dito alguma coisa errada? Tentou voltar à sua antiga rotina tocando violão, mas alguma coisa tinha mudado. Não era mais a mesma coisa.     

Depois de algumas semanas sumida ela finalmente voltou. Estava com um roteiro nas mãos. 

_ Finalmente terminei! Disse ela sorrindo com um ar vitorioso. 

_ Terminou o quê? 

_ O musical que escrevi para a gente. Lógico que não escrevi partituras porque eu não sei. Mas eu vou cantando e você tira de ouvido, pode ser? 

-Legal! É sobre o quê? 

_ É uma história de amor. Já que você não me beija fora dos palcos, que seja neles então. 

Era tudo o que Kalel precisava ouvir para puxar a moça pela cintura e consumar aquele relacionamento que na verdade já havia começado Há muito tempo atrás, desde que ela o ouviu tocar pela primeira vez da janela do seu quarto enquanto lia Shakespeare e ensaiava na frente do espelho. 

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