Conta um conto

quarta-feira, 20 de março de 2024

Apartamento 303

Amadeus Gontijo trabalhava como detetive particular, seguindo pessoas e tirando fotos de flagrante adultério. Abandonou qualquer tipo de moral ou ética depois de quase morrer de fome seguindo princípios. Era ganancioso e não se orgulhava, tampouco se envergonhava. De acordo com a sua ótica, estava apenas evidenciando os vacilos dos outros. Nunca precisou fazer nenhum tipo de montagem para expor os vilões de sua narrativa. Sentia um pouco de pena das mulheres que eram traídas, mas nunca dos homens, porque para ele era um claro sinal de que eles estavam satisfazendo as moças. Tinha um assistente chamado Abel que fazia as compras para ele e dirigia o carro (que era do ajudante). Seguiam essa rotina sem problemas até que um dia apareceu uma mulher linda em seu escritório/apartamento e disse a ele:



_Boa tarde, meu nome é Verônica Pavão. Meu marido descobriu que eu o estou traindo e ele quer me matar.

O detetive cuspiu o uísque barato que estava tomando e perguntou assustado?

_ A senhora tem alguma prova disso? Quem te indicou e porque você não foi direto na polícia?

_ Meu esposo Alair é amigo de infância do delegado. Se eu falecer ele arquiva o caso. Talvez até já tenham combinado isso.

_ Você sabe se alguém te seguiu até aqui?

_ Não que eu saiba.

_ Esse caso é interessante. Vou precisar de afiar todos os meus instintos. Abel, traga a vodka boa. Não aquela vagabunda que eu uso para escovar os dentes. A que está presa no congelador. A senhorita quer alguma coisa?

_ O senhor tem calmante?

_ Não, mas tenho muito álcool. Pode escolher a bebida que quiser que eu te sirvo.

_ Quero absinto então.

_ Porra, mas aí você foi longe, né? Quem compra essa porra? Enfim pode ser um vinho?

_ Vinho está ótimo.

_ Abel, traz um vinho para a moça. Coisa boa. Se trouxer vinho de cozinha eu quebro na sua cabeça.

_ Vocês têm uma parceria um tanto tóxica, não?

_ Não, é só um pouco de amor bruto. Ele está acostumado. Antes eu batia, hoje eu só xingo. Nossa relação está evoluindo, sabe?

_ Fico feliz em saber disso. _ respondeu a moça.

_ Mas me conte os detalhes. A partir de hoje você fica sob os nossos cuidados. Tem dinheiro?

_ Tenho, isso não é problema.

O rapaz trouxe uma taça de vinho, que ela acabou virando numa só golada.

_ Bom, eu sou casada com o Alair há sete anos. Ele é dono da rede de supermercados TANAM.

_ Sério? Nossa, eu compro muita coisa lá.

_Ele é muito ocupado e viaja bastante. Aí acabou rolando um lance com Daru o meu professor particular de Yoga e dono do centro Respirah! De Meditação. Meu marido é muito ciumento e disse que se fosse traído, mataria todos os envolvidos.



_Ok e como você sabe que o Alair descobriu?

_ Meu amante está morto. Foi assassinado. _ após dizer isso ela começou a chorar.

_ Será que ele não foi morto por algum outro motivo?

_ Acho muito difícil, ele era muito tonto, muito inocente. Não tinha maldade no coração, sabe?

_ Mas tava pegando mulher casada, não era tão inocente assim. _ Abel interferiu.

Amadeus fez um gesto silencioso com a cabeça para o seu assistente, pedindo para que ele não se intrometesse na conversa. Voltando-se para a moça, perguntou:

_ Eu sei que é um assunto difícil, mas sabe dizer como ele foi assassinado?

Nesse momento o celular dela tocou. Era o marido.

_ É ele! O que eu faço?

_ Respire e atenda normalmente, como se nada tivesse acontecido. A gente te dá privacidade. Vamos para a cozinha, Abel.

Os dois se retiraram e ela ficou conversando no telefone. Depois que desligou ela começou a chorar e gritar:

_ Ele sabe! Ele sabe! Eu vou morrer! Eu vou morrer!

Os dois entraram correndo na sala. Amadeus perguntou:

_ O que aconteceu? Como foi a conversa?

_ Ele sabe! Ele sabe!

_ Ele te disse?

_ Praticamente disse.

_ Como assim?

_ Ele disse que eu era a coisa mais importante da vida dele e me amava mais que tudo...

_Agora fiquei confuso.

_Ele nunca me disse isso. Ele provavelmente está gravando a ligação para ter um álibi quando me matar.

_Isso não é inteiramente impossível. _ o ajudante novamente interveio.

_Abel, vai comprar uma rabanada lá embaixo. Traz uma dúzia.

_ Uma dúzia? Mas quem vai comer isso tu...

_ Porra, traz uma dúzia de rabanadas que eu vou distribuir no sopão dos mendigos! Vai logo!

O assistente saiu sem entender nada. Quem iria pagar pelas rabanadas? Ele nunca tinha feito caridade...assim que começou a descer as escadas entendeu porque tinha sido expulso do recinto e riu sozinho. Amadeus decidiu voltar ao assunto do assassinato do instrutor, afinal de contas as duas coisas provavelmente poderiam não estar relacionadas e ela estaria se preocupando à toa.

_ Ele foi encontrado congelado dentro de um freezer de frigorífico, fazendo a pose da Flor de Lótus.

_ Ok, isso é bem incomum. E você acha que os assassinos arrumaram o cadáver dele assim?

_E você acha que ele iria se trancar dentro de um freezer para meditar?

_ Sei lá, você mesma disse que ele era burro.

_ Burro não, eu disse tonto. É diferente.

Amadeus não entendeu a diferença, mas deixou quieto. Por fim ele disse:

_Ainda não entendi a parte do assassinato.

_ Isso que é o genial. É um assassinato que não parece assassinato. O freezer era do supermercado do Alair, você não está vendo a conexão?

_ Você está afirmando que o seu marido colocou um revólver na cabeça do seu amante e mandou ele ficar trancado nessa posição dentro de um freezer, mesmo sabendo que ele iria congelar e morrer do mesmo jeito?

_ Tá vendo? Agora concordamos que ele foi assassinado!

_ Nossa, agora você bugou a minha mente. Mas se ele não fizesse a posição, iria tomar o tiro na cabeça e isso iria dificultar para o assassino, que teria que se livrar do corpo. Além disso, ele morreria mais rápido. E porque manter a posição depois que a porta se fechou?

_ Sei lá, ele é tonto. Já disse. Era tonto, melhor dizendo.

_ Minha senhora, sinceramente eu acho que não há caso nenhum. Esse homem deve ter se trancado lá por acidente por causa do silêncio para poder meditar em paz. Na minha opinião ele é um sério candidato ao Darwin Awards, nada mais que isso. Eu gostaria muito de ganhar dinheiro com essa sua teoria maluca, mas estaria perdendo o seu tempo e o meu. De qualquer forma recomendo que a senhora durma hoje num hotel e tome cuidado com o seu marido, caso eu esteja errado, só por via das dúvidas.

_ Será que eu estou me preocupando à toa?

_ Talvez sim, embora todo cuidado seja pouco. Contrate um guarda-costas, diga para ele que você não tem se sentido segura ultimamente. Faça questão de incluir testemunhas quando disser isso. Eu vou deixar o seu depoimento registrado e se alguma coisa acontecer com você eu te garanto que contarei tudo o que sei para a polícia.

A moça se levantou, meio desconcertada e foi saindo devagar em direção à porta. Agradeceu o tempo dispensado e desceu as escadas pensando nos conselhos de Amadeus. No caminho cruzou com Abel, que lhe ofereceu uma rabanada.

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