Conta um conto

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O olho de Padax

 

A ilha de Thalassa ficava no mar de Aquilonis, localizado entre a parte continental chamada Agamemnonia ao norte e Elíthera ao sul. A leste ficava o oceano Archaia e a oeste Anótatos, duas porções vastas de água salgada tanto inexplorada quanto recheada de lendas e mistérios.

O navegador que tinha conseguido alcançar a maior distância de que se tem notícia foi o audacioso Petryos com sua embarcação chamada Myrtanos, um valente desbravador que tinha chegado a lugares onde muitas pessoas nunca sonharam em ir. Seu filho Yanos não herdou a mesma disposição, se contentando em gerenciar uma taverna na ilha isolada em questão. Arton, seu amigo que morava no farol local, não se conformava com isso:

_ Não entendo. Simplesmente não entendo.

_ Sim, eu sei. Você comenta isso todo dia. Está ficando chato, a propósito.

_ Mas cara, seu pai foi uma pessoa lendária, um nome que vem ressoando há décadas…você sinceramente não está cansado desse tédio?

O tédio é seguro, não o despreze, meu caro.

_ A gente não sai dessa ilha nem para comprar vinhos no continente. Você não tem nem um pouco de curiosidade em saber o que mais existe ao nosso redor?

_ Eu até penso nisso às vezes, mas não compensa o risco.

Essas conversas seguiam recorrentes, até o dia em que o faroleiro avistou certa noite um estranho ponto luminoso caindo do céu e crescendo à medida em que se aproximava do solo. Arton correu depressa até o local da queda e encontrou uma bela moça no fundo de uma cratera, com pés de gaivota. Ele a pegou em seus braços e a carregou até o farol, onde cuidou até que ela retomasse a sua consciência. Quando ela finalmente acordou, estava bem confusa e demorou a se lembrar do que tinha realmente acontecido. Sabia que seu nome era Strix e era uma bruxa. Tudo o que o faroleiro sabia era que ela estava caída ao lado de uma estranha pedra lilás que brilhava de uma forma bastante curiosa, pulsando como um coração. Quando ele mencionou a gema, de repente ela se recordou de tudo. Perguntou desesperada:

_ Por favor me diga aonde está essa joia!

_ Eu guardei no meu armário, porque?

_ É o olho de Padax. É um artefato extremamente perigoso. Eu roubei do Conclave porque a líder delas, a bruxa Calix, a deseja para comandar todos os monstros marinhos e dessa forma obter uma enorme vantagem sobre o comércio intercontinental. Esse tipo de situação pode desencadear guerras e mortes intermináveis.

_ E como a gente se livra dessa pedra?

_ A gente tem que atirar ela no abismo interminável de Taruxos, localizado em uma ilha no extremo leste do oceano de Archaia.

_ Isso é complicado. Não temos tripulação nem barco para fazer isso.

_ Eu não consigo fazer isso sozinha, é muito longe para seguir voando em alto-mar por tanto tempo. Sem falar que as bruxas do Conclave logo me alcançarão, então estamos com pouco tempo.

Era a desculpa perfeita para Arton sair daquele marasmo a que estava confinado, então obviamente ficou empolgadíssimo com essa oportunidade. A primeira coisa a fazer seria procurar um barco para essa missão. O único disponível ficava no estaleiro do velho Kartopolos, um navegador aposentado que tinha perdido sua tripulação em um naufrágio, após confrontarem uma serpente marinha gigantesca. Levaram algumas horas para chegar lá, pois o local ficava no outro lado da ilha.

Chegando lá, demoraram um bom tempo para convencer o velho a construir um barco resistente o bastante para tal viagem e ele só aceitou com a condição de ser o timoneiro da embarcação. Em seguida viria o problema mais difícil, que seria arranjar voluntários para essa empreitada. No caminho para a taverna, o faroleiro não conseguiu evitar de perguntar sobre algo que o estava incomodando já há algum tempo:

_ Me desculpe, mas há algo que preciso lhe perguntar, é apenas uma curiosidade, não se ofenda…

_ É sobre os meus pés, não é?

_ Pois é.._ respondeu ele meio sem jeito.

_ Faz parte da maldição, por afastar a pedra do seu altar no Conclave. Agora preciso ir até o fim, se quiser voltar a ter pés normais de novo._ respondeu ela rindo.

Depois de muitas e muitas horas de conversa, Yanos finalmente foi convencido de que não havia outra opção: teria que se voluntariar naquela missão suicida pois não haviam muitas pessoas que pudessem ir no seu lugar. Na verdade praticamente nenhuma que já não estivesse incluída nessa loucura.

_ Qual será o nome da nossa embarcação? Perguntou Arton que não conseguia disfarçar a sua empolgação.

_ Sinceramente isso não me interessa.

_ Ok, então escolho Aion, que representa eternidade e imortalidade.

_ Por mim tá ótimo.

_ Precisamos de guerreiros… e mapas.

_ Tenho muitas anotações do meu pai, acho que vai ajudar. Quanto a guerreiros, a única alternativa é levar o Karyo.

_ Mas ele é maluco, completamente psicótico. Toda vez que sai da cadeia arruma briga. Instável demais.

_ Exatamente por isso ele não vai fazer falta aqui. Precisamos ser pragmáticos. Além disso, ele não é difícil de lidar. É só um pouco impulsivo.

_ A gente vai ter que treinar lutas também, até o barco ficar pronto.

E assim foram passando os dias, confeccionando armas e treinando combate com a pessoa mais surtada e disponível naquele momento, embora soubessem que muitos dos desafios que eles eventualmente enfrentariam eram completamente imprevisíveis. Arton treinou o jovem aprendiz Oryxo para operar o farol e Yanos deixou sua garçonete Vanosha encarregada de gerenciar o seu estabelecimento.

Quando o barco finalmente ficou pronto eles coletaram todos os mantimentos que podiam e traçaram uma rota no mapa até o seu objetivo.

No dia da partida, o taverneiro ainda estava bastante apreensivo e contrariado, pois aquele era o seu pior pesadelo. Zarparam em uma manhã ensolarada em direção a um infinito atraente e perigoso na mesma proporção. A nau desfilava com elegância e sutileza pela imensidão azul, valsando com as ondas numa sincronia ímpar. Kartopolos ficou tão emocionado que quase chorou embalado em sua nostalgia particular. Arton subia empolgado pelo mastro principal com a leveza de um símio se equilibrando nos galhos de uma árvore. Era como se ele tivesse treinado a sua vida inteira para aquela função. Seu lugar favorito no barco era o cesto da gávea, o ponto mais alto de onde ele avistava toda a magnitude da vastidão que os cercava.

Os primeiros dias seguiram tranquilos, onde a tripulação pescava e aproveitava para se conhecer melhor. Tudo era novidade: os pássaros pescando, os golfinhos e baleias acompanhando a embarcação como se bailassem ao seu redor. À noite bebiam vinho e cantavam, na tentativa de espantar o medo da iminente ameaça que provavelmente os alcançaria.

Foi então que avistaram o primeiro monstro marinho. Tinha o tronco semelhante ao de uma baleia, revestido por uma estranha carapaça de corais e algas. Suas quatro pernas eram escamadas com barbatanas nas extremidades, que lhe permitiam nadar com bastante rapidez. A boca era enorme e dentada como a de um tubarão. Aproximou-se do barco com rapidez e ferocidade, enxergando o mesmo como uma ameaça. Yanos estava petrificado de medo cada vez que a criatura chocava seu corpo contra a embarcação. Virou-se para a feiticeira e perguntou:

_ Você não disse que essa pedra controlava monstros marinhos?

_ Sim, mas ela precisa estar presa a um determinado cetro, após um ritual com os alinhamentos dos astros e etc. Sozinha ela não faz nada.

_ Podia ter explicado isso antes não?

_ E faria diferença?

Karyo estava determinado a pular no monstro e lhe acertar uma espada no olho, mas foi impedido por Arton, que teve a idéia de repelir a ameaça usando algum tipo de líquido fedorento para repelir o mesmo. Infelizmente não tinham nada a disposição, mas Strix aproveitou essa ideia para usar seu feitiço e deixar a água turva e pegajosa ao redor do Aion, levando a criatura a mudar de idéia e seguir em frente.

Quando estavam começando a comemorar perceberam que uma tempestade estava se formando. Recolheram as velas e esperaram pelo pior. As ondas subiam em alturas absurdas, chacoalhando o barco num ritmo assustador. Um raio afetou o mastro principal, levando a tripulação a repensar a sua estratégia. Quando a chuva cessou, ficaram por um bom tempo à deriva até finalmente avistarem uma ilha de tamanho mediano, que continha uma pequena floresta e um enorme rochedo, rodeados de praia por todos os lados.

Yanos e Arton ficaram encarregados de alcançar aquela porção de terra e conseguir a madeira necessária para consertar as avarias do Aion. Enquanto caminhavam pela floresta perceberam pegadas gigantescas no chão. Ficaram com medo, mas precisavam da lenha. Começaram a cortar rapidamente as árvores quando de repente ouviram algo se aproximando lentamente. Seus passos faziam muito barulho e seu corpo gigantesco ia derrubando tudo por onde ele passava. Pensaram em correr, mas não faria muita diferença, então resolveram se esconder. Se deitaram no chão e foram se arrastando sem rumo até encontrarem uma fenda no pedregulho gigantesco. Felizmente conseguiram entrar, mas, ainda assim, estavam indefesos.

De longe avistaram um gigante ciclope que percebeu a presença de estranhos em seu território e estava tentando localizá-los. A tensão aumentava a cada segundo, pois ele farejava sem parar e não demonstrava sinais de que iria desistir enquanto não encontrasse os intrusos. De repente o inevitável aconteceu: a criatura os avistou e avançou rapidamente em direção ao grupo. As respirações da dupla ficaram cada vez mais ofegantes e eles acharam que tinham encontrado o seu fim quando subitamente um monstro voador semelhante a um pterodáctilo deu um rasante e atacou o gigante. Enquanto os dois se atracavam, a dupla de aventureiros pegou as madeiras que precisavam e correu para a praia, sem olhar para trás. Começaram a carregar as toras cortadas dentro da pequena balsa que tinham utilizado para chegar na ilha, pois o Aion estava ancorado a alguns metros dali. Depois começaram a remar com pressa, enquanto o ciclope terminava de estrangular o monstro alado.

Quando estavam quase alcançando o barco foram novamente avistados pelo gigante, que pegou uma pedra enorme e foi correndo em direção à praia, para logo em seguida atirar o grande projétil.

A dupla no barquinho ficou congelada de medo, prendendo a respiração enquanto uma sombra enorme lentamente os encobria. De repente a pedra parou no ar, por efeito da magia telecinética de Strix que a atirou para o lado no oceano, fazendo uma onda enorme que quase virou a embarcação do grupo.

Naquela noite eles tiveram problemas para dormir, pois estavam bastante impactados pelos eventos recentes. Beberam vinho e adormeceram tão pesado que não perceberam o que aconteceu com o Aion enquanto eles dormiam. Quando acordaram eles perceberam que o barco tinha sido suspenso no ar pelo casco de uma tartaruga gigantesca que havia emergido por debaixo deles. Completamente indefesos e surpresos, ainda estavam tentando compreender o que estava acontecendo quando um portal se abriu na cabeça do réptil e três bruxas saíram dele. Strix logo as reconheceu:

_ Agnes, Sidonia e Berga. Finalmente me encontraram.

O trio foi planando lentamente até chegarem à proa da embarcação. Pousaram lentamente enquanto a tripulação do Aion as observava com espanto e medo. Depois de um breve silêncio, a lider do trio tomou a palavra:

_ Bem, preciso admitir que vocês chegaram mais longe do que eu tinha imaginado. Mas eu não quero me prolongar por mais tempo que o necessário. Só quero a pedra e nós iremos embora.

_ Se eu te entregar a gema, nosso esforço terá sido completamente em vão. Ninguém merece nem pode possuir o poder que emana dessa relíquia._ retrucou Strix._ Porque você acha que eu estou fugindo com ela?

_ Porque você é uma traidora que pensa ser mais merecedora do que as outras!_ Respondeu Berga, a bruxa à direita da líder Agnes. Esse artefato pertence ao Conclave e a sua punição até que foi leve por você ter nos roubado!_ completou ela referindo-se aos pés de Strix.

_ Porque estamos nos explicando tanto? Você sabe que errou!_ Sidonia finalmente acabou dizendo alguma coisa. _ Vamos! Entrega logo a pedra ou faremos uma carnificina aqui!

Strix logo ficou na sua posição de combate e criou um campo de força em volta dos outros tripulantes, que estavam completamente confusos e se sentindo bastante indefesos. Yanos sentiu que seus dias de aventureiro tinham finalmente terminado quando Arton teve uma idéia. Pegou o pequeno espelho que ficava em seu bolso e refletiu a luz do sol no rosto das bruxas. Foi tão imprevisível e inusitado que as deixou vulneráveis por um breve momento, permitindo que a feiticeira com pés de ave as aprisionasse temporariamente numa pequena esfera de vidro, aproximadamente do tamanho de uma bola de cristal usada pelas ciganas. Depois disso a tartaruga lentamente submergiu e seguiu seu rumo, como se nada tivesse acontecido.

_ Infelizmente vocês terão que continuar sem mim._ disse a bruxa._ preciso levar esse trio o mais longe possível, enquanto ainda tenho tempo, pois essa redoma em breve irá se quebrar. Vou deixar a pedra com vocês dentro de uma urna, para que vocês não sejam afetados. Não quero saber para onde vocês vão, só quero que levem o mais longe possível.

Usando sua magia ela pegou um pequeno baú que estava ali perto, criou um pequeno invólucro ao redor do mesmo e o entregou nas mãos de Karyo.

_Para chegar no tal abismo que você comentou, não tem um mapa ou algo do gênero?_ Perguntou Yanos.

_ Não dá tempo para explicar. Adeus!

Depois dessas últimas palavras ela flutuou até o portal, que se fechou atrás dela.

_ Assim como ela veio, se foi. Misteriosa e sedutora. Parece até um sonho gostoso que terminou de repente…_ disse Arton com um tom de tristeza na voz.

_ Sonho gostoso? Tá mais para pesadelo. Você se esqueceu de que a gente quase morreu inúmeras vezes desde que essa loucura toda começou? Por mim a gente lança essa pedra no fundo de uma caverna qualquer e volta. Basta a gente esconder num lugar bem inóspito, longe o bastante para evitar qualquer tipo de problemas.

Assim todos concordaram e seguiram com o plano, continuaram navegando por mais uma semana sem parar até avistarem uma ilhota perdida no meio do oceano. Tinha apenas areia e algumas pedras. Era menor que o barco, mas funcionava como um esconderijo para a pedra, afinal, quem poderia adivinhar? Cavaram um buraco bem fundo e ali a deixaram. Certamente não era o ideal, mas no momento servia como a melhor alternativa possível.

_Agora é só voltar, finalmente essa loucura acabou!_ Disse Yanos respirando aliviado._ Agora é só seguir remando de volta e nunca mais repetir esse tipo de aventura!

_ Mas quem disse que precisa acabar? A gente quase morreu, é verdade, mas viu muita coisa legal que a gente nem imaginaria que existisse…

_ Isso é verdade._ concordou Karyo._ Ei Yanos, que tal a gente procurar o seu pai?

_ Não, nem começa!

_ Eu espero um dia reencontrar a Strix…

_ Vamos fazer votação para ver quem quer ir nessa nova missão!

_ Não, eu tenho a taverna para voltar!

_ Não vai demorar nada, você vai ver.

_ A gente pode ir ver se o tal do abismo existe!

Yanos sentou triste em um barril no convés, já prevendo que aquele seria apenas o início de várias aventuras e problemas que ele encontraria pela frente. Estava resignado, mas não estava com medo, porque embora não admitisse, nunca tinha se sentido tão vivo quanto desde que saíram de casa.



























terça-feira, 26 de março de 2024

Central dos Autônomos

 O apartamento 101 era onde se reunia o núcleo mais jovem do prédio. Pessoas que ainda tinham muitos sonhos ainda a ser conquistados, muitas frustrações e corações partidos que despontarão no horizonte provisoriamente longínquo em suas vidas. Vivem e desfrutam do sabor de cada momento tentando ganhar o pão de cada dia aos trancos e barrancos. 

Os cinco habitantes que dividem o aluguel são a confeiteira Isabel, Leila que passeia com cachorros e ocasionalmente faz bico de babá, o motoboy Maurinho, o motorista de aplicativo Plínio e o fotógrafo Sócrates. Não se sabe ao certo como e quando esse time foi formado, mas as relações interpessoais são bastante respeitosas, caso contrário esse esquema não funcionaria.

 Todos desviam uma parte do seu limitado orçamento para pagar as contas e o aluguel, embora insistam em fazer festas quase todo dia, sem considerar a economia necessária para andar com os pagamentos em dia. Isso gera várias discussões, pois alguns tentam ser mais responsáveis enquanto outros só querem curtir sem se preocupar com o dia seguinte.

_ A gente precisa de um jarro, colocar tudo certinho numa planilha ou então todo mês vai ser esse stress. Não aguento mais essa incerteza, gente. Não consigo nem dormir direito. _ pontuou Isabel, que acaba sendo uma espécie de irmã mais velha do grupo.

_ É uma boa ideia, mas nós dois somos minoria aqui. _ afirmou Plínio que tinha um leve interesse amoroso na cozinheira.

_ A gente precisa dessas reuniões para conhecer possíveis novos empregadores, é assim que funciona hoje em dia. Esse negócio de mandar currículo já era. _ disse Maurinho para defender o esquema atual de curtição.

_ Eu também gosto de diversão, mas pelo menos não fico inventando desculpa fajuta para me justificar. Eu só assumo e pronto. A gente rala tanto, aguenta tanta gente insuportável que é bom ter uma válvula de escape.

_ O que vem de baixo não me atinge. _ disse o motoboy fazendo uma brincadeira com a baixa estatura da moça. _ ainda não entendo como você carrega uns cachorros que são duas vezes o seu tamanho. Se botar uma sela dá para você cavalgar igual cavalo.

A garota respondeu apenas fazendo uma cara feia e dando a língua para ele, sem intenção de começar uma briga.

Sócrates encerrou a discussão propondo um meio termo entre os dois lados, tendo em vista que ele é o mais diplomático, sempre evitando conflitos, chegando inclusive a sofrer bastante com isso, pois acaba assimilando emocionalmente muita energia ruim que deveria ser extravasada, mas fica presa ocasionando tiques e dores de cabeça.

Assim os dias caminhando, como uma montanha russa onde o destino era incerto quando surgiu um evento que traria oportunidades para o quinteto: Adelaide, uma das patroas de Leila afirmou que sua filha iria se casar e estava pensando em fazer a festa com um orçamento mais modesto, porque ela estava economizando para fazer uma viagem, o que obviamente gerou várias discussões dentro daquela família. Isabel ficou responsável pelo buffet, Sócrates pelas fotos e Plínio ficaria na área para o transporte de alguns convidados. 

Leila por sua vez iria como convidada e Maurinho era o único sem motivo aparente para ir, mas por acaso ele era o ex da noiva e ainda não havia superado o término. Isso gerou uma tensão enorme no grupo, que antecipava uma tempestade se formando. A passeadora de cães era a mais preocupada, pois um desastre dessa magnitude poderia lhe custar uma de suas empregadoras mais rentáveis. Ela chegou até mesmo a pensar em dopar o motoboy com o Rivotril que usava para dormir, mas depois achou aquilo tudo muito extremo e desistiu da ideia.

Todos então se reuniram para conversar com o rapaz para que ele não fizesse nada que fosse gerar algum problema naquele evento tão importante para todos eles. Explicaram de todas as maneiras possíveis para que ele entendesse, mas ainda assim Maurinho não aceitava que ela ficasse com outro que não fosse ele. Começou então a pensar secretamente em maneiras de sabotar aquele casamento. Estaria lá de qualquer jeito para atrapalhar, nem se fosse como penetra.

Apesar de todo aquele possível contratempo, o resto do pessoal continuou investindo nos seus afazeres para entregar o melhor serviço possível, acreditando que aquele seria um grande cartão de visitas para catapultar suas respectivas carreiras.

Quando enfim chegou o dia do grande evento, todos estavam mais do que prontos para dar o seu melhor. Capricharam no visual e foram no carro de Plínio. Maurinho resolveu tentar a sorte em meio a todo aquele infortúnio que o cercava e resolveu comprar um bilhete de loteria, para ver se ganhava algum dinheiro e melhorava o seu humor naquele momento. O sorteio sairia em alguns dias, mas pelo menos lhe deu algo para pensar que não fosse a ex-namorada. Deitou-se na cama e ficou olhando o teto depois que todos saíram.

A decoração da festa estava bastante chique. O grupo chegou com algumas horas de antecedência, para deixar tudo preparado. Plínio, Leila e Sócrates foram para a igreja, enquanto Isabel ficou arrumando a comida na recepção, que era em um enorme sítio da família.

Quando chegou o momento da festa, estava tudo pronto e muito bonito. Uma das madrinhas começou a flertar com o fotógrafo, deixando a passeadora de cachorros com muito ciúmes, sentimento esse que era desconhecido até mesmo para ela. Tinha muita afinidade com Sócrates e o achava atraente, mas nunca tinha pensado em nenhum envolvimento com ele até aquele momento. Se sentiu confusa. Aquela sensação era nova, diferente e ela não sabia lidar com isso. Seu primeiro impulso foi puxar o cabelo da garota e fingir que tinha acidentalmente prendido a sua pulseira nas madeixas dela. Depois disso o rapaz se afastou das duas, sem entender nada.

As crianças ficaram entediadas na festa e resolveram fazer uma travessura. Enquanto todos estavam distraídos dançando elas resolveram soltar os cachorros do canil, sendo que entre eles estava o Dogue Alemão Maximus, que tinha aproximadamente 90 cm de altura. A matilha entrou correndo no meio das festividades, atraída pelo cheiro da comida e derrubando tudo. Os garçons ganharam dentadas nas pernas para assim soltarem as bandejas. Os risos dos pequenos logo denunciaram a sua autoria do delito. Foram sentenciados a ficarem detidos em um dos quartos da sede, até a festa acabar.

O primeiro impulso de Leila foi tentar conter os cachorros, mas seus reflexos estavam prejudicados porque ela tinha decidido beber para sublimar os seus sentimentos pelo fotógrafo. Pulou para agarrar o pescoço do imenso canídeo, mas acabou errando o alvo, ficando assim presa (dessa vez de verdade) ao dogue alemão, que se desequilibrou e caiu em cima dela. Todos começaram a rir com exceção do fotógrafo que se prontificou a salvar a sua amiga. Quando a passeadora foi tentar dizer alguma coisa, novamente a madrinha interveio e puxou Sócrates pelo braço, levando-o para longe dali. 

A garota solitária e confusa deitou-se num banco de madeira branca e ficou olhando o céu estrelado, esperando aquilo tudo acabar rápido. Sentiu uma súbita vontade de chorar, mas não sabia explicar porque aquilo estava acontecendo com ela.

Plínio enquanto isso tinha certeza do que sentia por Isabel e buscava as palavras certas para demonstrar o seu afeto. Era complicado porque isso poderia afetar a sua convivência dentro do apartamento, caso fosse rejeitado e ficasse um clima constrangedor residual. Por fim sentou-se em um banco perto da cozinha e ficou olhando o vazio, refletindo sobre tudo aquilo.

_ Você está bem? _ disse Bebel lhe fazendo um cafuné na cabeça. _ Tá com uma cara estranha...

_ É difícil explicar. Estou a fim de uma garota, mas tenho medo de ser rejeitado.

_ Porque ela faria isso? Você é simpático, atraente. Acho que ela teria muita sorte em ficar contigo.

_ Não acho que ela gosta de mim desse jeito.

_ Você não vai saber até perguntar.

_ Sei não. Acho que vai piorar as coisas.

_ Fecha os olhos.

_ Hã?

_ Vai, fecha os olhos.

Assim que ele fechou os olhos ela o beijou nos lábios. Quando ele os abriu, ela sorriu e disse:

_ Nossa, você é lerdinho mesmo, hein?

Ele olhou confuso e Isabel o beijou de novo. Obviamente a mulher já tinha percebido as intenções do rapaz há muito tempo e sentiu que se ele não tomasse uma atitude, ela teria que se adiantar, nem que fosse para encerrar aquela inconstância.

De repente Maurinho apareceu na festa, todos ficaram apreensivos, menos Leila que continuava inerte afogando as suas mágoas. Sócrates se adiantou e foi abordar o intruso:

_ Veja lá o que você vai aprontar. Nossas carreiras estão à prova hoje. Não ponha tudo a perder.

_ Não se preocupe com isso, já desencanei.

Estava bêbado de cachaça e desmaiou em cima de uma das mesas. Um dos convidados que era mais idoso, não aguentou tanta emoção depois dos cachorros e acabou enfartando. A ambulância levou o velhinho e de quebra pegou também a passeadora de cachorros, que estava precisando urgente de uma injeção de glicose. Sócrates aproveitou e a acompanhou nesse trajeto:



_ O que aconteceu com você hoje?  Estava tão focada e de repente começou a encher a cara, não entendi nada.

_ Porque você não aproveitou e ficou com a sua amiguinha?

_ Que amiguinha? Do que você está falando?

_ A garota da festa que estava se oferecendo para você. Não percebeu?

_ A madrinha? A gente tava conversando, qual o problema?

O diálogo terminou ali porque a moça desmaiou. Quando ela despertou não se lembrava de mais nada, mas passou a sentir algo diferente pelo fotógrafo, que ela precisava processar antes de seguir em frente com aquilo. Maurinho ganhou uma pequena fortuna, mas antes de pensar em fazer uma festa refletiram sobre o enfarto do velhinho e decidiram abrir uma caderneta de poupança, porque afinal de contas a vida é breve, mas nem por isso precisamos viver no limite o tempo todo. A melhor forma de riqueza é aquela onde você possui dinheiro o bastante para não precisar se preocupar com ele.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Dois apartamentos e um zelador

     Isidoro e Otília se mudaram ainda jovens para o Edifício Solares. O ano era 1964 e eles tinham 10 anos cada um. A menina morava no apartamento de cima, o rapaz logo abaixo dela. Haviam poucas crianças no prédio, que era ocupado em sua maioria por artistas boêmios que tinham ideias subversivas, sendo posteriormente perseguidos, torturados e mortos pelos militares. O único companheiro delas era Atanagildo Pereira, filho do zelador. O trio cresceu junto e ficou bastante íntimo.

Passaram se muitos anos e agora eles eram jovens, na faixa dos vinte anos. O rapaz começou a nutrir sentimentos pela sua vizinha, mas tinha medo de criar uma situação desconfortável e perder a amizade da moça. Sua timidez também impedia que ele se relacionasse com outras garotas na escola, fazendo com que ele se tornasse cada vez mais introvertido. Além disso, só tinha olhos para Otília, com quem tinha uma amizade muito forte. Não estudavam na mesma escola, por divergências religiosas por parte dos pais, já que uma instituição era metodista e a outra era católica. Compensavam essa ausência conversando entre si sempre que podiam.



Certo dia a garota lhe confessou que estava interessada em um rapaz que estudava com ela. Ele ficou normal diante dela, embora estivesse todo quebrado por dentro. Obviamente ele não lidou bem com aquela situação e começou a ficar cada vez mais recluso, sentindo-se rejeitado. Ela não entendeu nada, ficou triste e terminou sendo consolada por Atanagildo, com quem acabou namorando.

Isidoro ficou bastante chateado com aquilo tudo e cortou relações com os dois, durante muito tempo. Era uma raiva que ele não conseguia explicar, um orgulho ferido que não tinha a menor intenção de cicatrizar, pelo menos não tão cedo. Enfiou a cabeça nos estudos e entrou para a faculdade de engenharia, sem deixar de acompanhar de longe o progresso de Otília, que sempre esteve em seus pensamentos. Ela resolveu fazer Letras, queria muito ser professora como sua mãe.

Ele se envolveu com várias mulheres, mas nunca se casou, pois nenhuma se comparava ao seu primeiro e único amor. O relacionamento físico ia bem, mas não suportava a convivência diária. Não sentia nada em comum, se sentia avulso, deslocado, por mais que tentasse. Nunca conseguiu superar a ausência da moça que se casou, indo morar longe dele e do seu primeiro ex, que agora assumia a vaga do pai como faxineiro do prédio.

Atanagildo, que nunca foi muito de estudar, se resignou a seguir o caminho de seu antecessor, por puro comodismo. Não tinha grandes aspirações, ali ele recebia um salário fixo, dormia em um anexo no térreo e ainda tinha facilidade de contato com as diaristas. Estava feito.


O tempo foi passando e Isidoro acabou ficando com o apartamento, depois que os seus pais faleceram. O zelador então se reaproximou de seu amigo nesse momento fúnebre.

_Você sempre tem essa tática, né? Ganhar o coração das pessoas quando elas estão tristes, vulneráveis. _ disse o inquilino enquanto era abraçado.

_ Simplesmente acho que isso não se nega a ninguém. E eu estou sempre pronto a oferecer.

_ Isso é muito humano da sua parte. Por isso não dá para ficar com raiva de você.

_É, mas por conta desse seu faniquito, acabou perdendo alguém que significava bastante para você.

_ Ela e você também, né?

_ Você nunca me perdeu. Eu estava só esperando você ficar pronto para voltar.

_ Não é à toa que ela preferiu ficar com você do que comigo.

_ Você gostava dela?

_ Não sabia? Achei que estava implícito.

_ Cara, se você não falar as coisas, ninguém vai adivinhar. Você precisa parar de achar que as pessoas leem a sua mente.

Nesse momento Isidoro percebeu o quanto esteve equivocado por todos aqueles anos. Já estava velho e não tinha se declarado para a única mulher que ele tinha realmente amado em toda a sua vida. Sentou se na poltrona que ficava na sala, perto da janela e ficou observando aquele ambiente vazio por várias horas, até a escuridão tomar conta de tudo.

Decidiu adotar um cachorro, um basset hound chamado Salim para ter uma companhia quando não estivesse lendo livros ou vendo filmes e séries na televisão. Aceitou seu estilo de vida solitário, que acabou se tornando estranhamente confortável para ele. Fazia também algumas atividades com Atanagildo, que aderiu ao estilo de vida sem relacionamento fixo, onde segundo ele havia mais liberdade.


Estava indo tudo seguindo uma relativa paz quando um rosto familiar retornou, após a morte do marido. Otília e sua gata angorá Matilde voltaram para o apartamento que era dela e estava vazio há bastante tempo, desde que os pais dela se separaram. Não quiseram vender porque haviam decidido que era herança da filha e ela faria o que quisesse com ele. A moça pensou várias vezes em se desfazer do imóvel, mas sempre arrumava uma desculpa para ir adiando. Agora estava de volta, mais amarga e cínica, sem a mínima vontade de socializar.

Isidoro sabia que teria um grande caminho a percorrer para reconquistar o carinho de alguém que ele havia deliberadamente abandonado sem motivo aparente. Inicialmente pensou em mandar seus pêsames através do faxineiro, mas depois decidiu ir pessoalmente. Tocou a campainha e ela não atendeu. Talvez não estivesse em casa, embora Atanagildo tivesse garantido que a viúva não saiu. Decidido a não perder a viagem ele gritou no corredor:

_ Sinto muito pela morte do seu marido! E sinto mais ainda por ter me afastado de você, tá bom? Você é a única mulher que eu amei na vida e eu sinto demais a sua falta!

O silêncio permaneceu no local. Alguns curiosos observaram a cena pelo olho mágico, mas não tiveram coragem de sair e lhe dar um abraço após aquele momento claramente constrangedor. O velho estava triste, mas aliviado pois não sabia como ela reagiria. Poderia lhe bater ou lhe dar um beijo. Foi preparado para as duas reações e não teve nenhuma. Foi ruim, mas sinceramente não tinha certeza se sobreviveria ao tapa. Naquele dia ele foi para casa com um sentimento agridoce em seu coração.


Nos dias seguintes começou a deixar pequeninos vasos de flores na porta, na expectativa de pelo menos amolecer um pouquinho o coração dela e ao mesmo tempo se redimir dos erros cometidos no passado. Otília por sua vez ficou com raiva e jogou todos aqueles vasos no lixo, embora a sua vontade fosse de atirar todos eles na porta do seu vizinho de baixo. Não precisava de consolo, carinho ou bajulação. Só queria ser deixada em paz com sua gata sem ser importunada até o fim dos seus dias.

Isidoro se sentiu pessoalmente responsável por ela ter se transformado numa pessoa tão fechada, pois o seu afastamento fez com que ela perdesse alguém que poderia estar lhe fazendo companhia agora, ajudando nesse momento difícil. Sua atitude não foi só imatura. Foi covarde e egoísta também. Ele demorou a compreender como aquele ato tinha se mostrado tão nocivo a longo prazo. Ela precisava de desculpas genuínas, não de simples gestos de carinho.

Otília precisava saber que ele tinha noção do tamanho do estrago que o seu afastamento havia causado em sua vida. E assim ele fez. Sentou-se numa mesa, pegou lápis, papel e derramou todos os seus sentimentos numa carta que seria sua derradeira alternativa para derrubar aquela muralha entre eles que Isidoro inadvertidamente havia construído. Pediu ao zelador para entregar à sua vizinha em mãos e se certificar de que ela havia lido. Muitos dias se passaram. Ele estava a ponto de perder as esperanças quando de repente a campainha tocou. Quando abriu a porta tomou um soco no estômago de Otacília que chorando lhe disse:

_ Porque você demorou tanto tempo para fazer isso?

_ Você precisa me dar um desconto. Eu sou homem, poxa. _ disse o velho gemendo com a mão na barriga.

Ela lhe deu um beijo na testa e perguntou:

_ Não vai me convidar para entrar?

_ Depende, você vai me bater mais?

_ Só se você merecer. _ respondeu ela sorrindo.

Finalmente depois de tantos anos eles se abraçaram.

_ Você não faz ideia da falta que fez em minha vida.

_ Faço minhas as suas palavras.


A partir daquele momento eles nunca mais se separaram. Ficavam namorando e alternando os apartamentos, pois nenhum dos dois quis se desfazer do próprio imóvel. Além disso, sentiam mais liberdade para conviver com as suas próprias manias e excentricidades sem o risco de gerar algum tipo de desavenças, afinal de contas a última coisa que eles queriam naquela altura da vida era brigar e recomeçar tudo de novo.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Apartamento 303

Amadeus Gontijo trabalhava como detetive particular, seguindo pessoas e tirando fotos de flagrante adultério. Abandonou qualquer tipo de moral ou ética depois de quase morrer de fome seguindo princípios. Era ganancioso e não se orgulhava, tampouco se envergonhava. De acordo com a sua ótica, estava apenas evidenciando os vacilos dos outros. Nunca precisou fazer nenhum tipo de montagem para expor os vilões de sua narrativa. Sentia um pouco de pena das mulheres que eram traídas, mas nunca dos homens, porque para ele era um claro sinal de que eles estavam satisfazendo as moças. Tinha um assistente chamado Abel que fazia as compras para ele e dirigia o carro (que era do ajudante). Seguiam essa rotina sem problemas até que um dia apareceu uma mulher linda em seu escritório/apartamento e disse a ele:



_Boa tarde, meu nome é Verônica Pavão. Meu marido descobriu que eu o estou traindo e ele quer me matar.

O detetive cuspiu o uísque barato que estava tomando e perguntou assustado?

_ A senhora tem alguma prova disso? Quem te indicou e porque você não foi direto na polícia?

_ Meu esposo Alair é amigo de infância do delegado. Se eu falecer ele arquiva o caso. Talvez até já tenham combinado isso.

_ Você sabe se alguém te seguiu até aqui?

_ Não que eu saiba.

_ Esse caso é interessante. Vou precisar de afiar todos os meus instintos. Abel, traga a vodka boa. Não aquela vagabunda que eu uso para escovar os dentes. A que está presa no congelador. A senhorita quer alguma coisa?

_ O senhor tem calmante?

_ Não, mas tenho muito álcool. Pode escolher a bebida que quiser que eu te sirvo.

_ Quero absinto então.

_ Porra, mas aí você foi longe, né? Quem compra essa porra? Enfim pode ser um vinho?

_ Vinho está ótimo.

_ Abel, traz um vinho para a moça. Coisa boa. Se trouxer vinho de cozinha eu quebro na sua cabeça.

_ Vocês têm uma parceria um tanto tóxica, não?

_ Não, é só um pouco de amor bruto. Ele está acostumado. Antes eu batia, hoje eu só xingo. Nossa relação está evoluindo, sabe?

_ Fico feliz em saber disso. _ respondeu a moça.

_ Mas me conte os detalhes. A partir de hoje você fica sob os nossos cuidados. Tem dinheiro?

_ Tenho, isso não é problema.

O rapaz trouxe uma taça de vinho, que ela acabou virando numa só golada.

_ Bom, eu sou casada com o Alair há sete anos. Ele é dono da rede de supermercados TANAM.

_ Sério? Nossa, eu compro muita coisa lá.

_Ele é muito ocupado e viaja bastante. Aí acabou rolando um lance com Daru o meu professor particular de Yoga e dono do centro Respirah! De Meditação. Meu marido é muito ciumento e disse que se fosse traído, mataria todos os envolvidos.



_Ok e como você sabe que o Alair descobriu?

_ Meu amante está morto. Foi assassinado. _ após dizer isso ela começou a chorar.

_ Será que ele não foi morto por algum outro motivo?

_ Acho muito difícil, ele era muito tonto, muito inocente. Não tinha maldade no coração, sabe?

_ Mas tava pegando mulher casada, não era tão inocente assim. _ Abel interferiu.

Amadeus fez um gesto silencioso com a cabeça para o seu assistente, pedindo para que ele não se intrometesse na conversa. Voltando-se para a moça, perguntou:

_ Eu sei que é um assunto difícil, mas sabe dizer como ele foi assassinado?

Nesse momento o celular dela tocou. Era o marido.

_ É ele! O que eu faço?

_ Respire e atenda normalmente, como se nada tivesse acontecido. A gente te dá privacidade. Vamos para a cozinha, Abel.

Os dois se retiraram e ela ficou conversando no telefone. Depois que desligou ela começou a chorar e gritar:

_ Ele sabe! Ele sabe! Eu vou morrer! Eu vou morrer!

Os dois entraram correndo na sala. Amadeus perguntou:

_ O que aconteceu? Como foi a conversa?

_ Ele sabe! Ele sabe!

_ Ele te disse?

_ Praticamente disse.

_ Como assim?

_ Ele disse que eu era a coisa mais importante da vida dele e me amava mais que tudo...

_Agora fiquei confuso.

_Ele nunca me disse isso. Ele provavelmente está gravando a ligação para ter um álibi quando me matar.

_Isso não é inteiramente impossível. _ o ajudante novamente interveio.

_Abel, vai comprar uma rabanada lá embaixo. Traz uma dúzia.

_ Uma dúzia? Mas quem vai comer isso tu...

_ Porra, traz uma dúzia de rabanadas que eu vou distribuir no sopão dos mendigos! Vai logo!

O assistente saiu sem entender nada. Quem iria pagar pelas rabanadas? Ele nunca tinha feito caridade...assim que começou a descer as escadas entendeu porque tinha sido expulso do recinto e riu sozinho. Amadeus decidiu voltar ao assunto do assassinato do instrutor, afinal de contas as duas coisas provavelmente poderiam não estar relacionadas e ela estaria se preocupando à toa.

_ Ele foi encontrado congelado dentro de um freezer de frigorífico, fazendo a pose da Flor de Lótus.

_ Ok, isso é bem incomum. E você acha que os assassinos arrumaram o cadáver dele assim?

_E você acha que ele iria se trancar dentro de um freezer para meditar?

_ Sei lá, você mesma disse que ele era burro.

_ Burro não, eu disse tonto. É diferente.

Amadeus não entendeu a diferença, mas deixou quieto. Por fim ele disse:

_Ainda não entendi a parte do assassinato.

_ Isso que é o genial. É um assassinato que não parece assassinato. O freezer era do supermercado do Alair, você não está vendo a conexão?

_ Você está afirmando que o seu marido colocou um revólver na cabeça do seu amante e mandou ele ficar trancado nessa posição dentro de um freezer, mesmo sabendo que ele iria congelar e morrer do mesmo jeito?

_ Tá vendo? Agora concordamos que ele foi assassinado!

_ Nossa, agora você bugou a minha mente. Mas se ele não fizesse a posição, iria tomar o tiro na cabeça e isso iria dificultar para o assassino, que teria que se livrar do corpo. Além disso, ele morreria mais rápido. E porque manter a posição depois que a porta se fechou?

_ Sei lá, ele é tonto. Já disse. Era tonto, melhor dizendo.

_ Minha senhora, sinceramente eu acho que não há caso nenhum. Esse homem deve ter se trancado lá por acidente por causa do silêncio para poder meditar em paz. Na minha opinião ele é um sério candidato ao Darwin Awards, nada mais que isso. Eu gostaria muito de ganhar dinheiro com essa sua teoria maluca, mas estaria perdendo o seu tempo e o meu. De qualquer forma recomendo que a senhora durma hoje num hotel e tome cuidado com o seu marido, caso eu esteja errado, só por via das dúvidas.

_ Será que eu estou me preocupando à toa?

_ Talvez sim, embora todo cuidado seja pouco. Contrate um guarda-costas, diga para ele que você não tem se sentido segura ultimamente. Faça questão de incluir testemunhas quando disser isso. Eu vou deixar o seu depoimento registrado e se alguma coisa acontecer com você eu te garanto que contarei tudo o que sei para a polícia.

A moça se levantou, meio desconcertada e foi saindo devagar em direção à porta. Agradeceu o tempo dispensado e desceu as escadas pensando nos conselhos de Amadeus. No caminho cruzou com Abel, que lhe ofereceu uma rabanada.

terça-feira, 19 de março de 2024

A viagem dos Pelicanos

 

O apartamento 202 do Edifício Solaris era a sede do encontro mensal da Confraria dos Pelicanos, um grupo de amigos desde os tempos de faculdade. O nome surgiu em função do perfil da ave em questão, sempre solitária e malvista por onde passa. Lá eles se sentiam à vontade para desabafar sobre os seus problemas e beber bastante, além de jogar baralho e jogos de tabuleiro. O grupo era formado pelo dono do apê e bancário Alexandre que nunca tinha sucesso com mulheres, o veterinário Cassiano preso num casamento sem amor, o mulherengo DJ Michel e Astolfo, um professor de escola estadual e pai de gêmeos, constantemente sonolento e cansado por motivos óbvios.


_Essas reuniões são o ponto alto do mês para mim._ disse o anfitrião enquanto sacudia um dado em sua mão._ deixam minha vida mais suportável.

_ Odeio admitir isso, mas é o único lugar onde me sinto realmente em casa._ concordou Cassiano.

_ Eu adoro vocês, mas sempre achei que seria melhor se tivesse mulheres. Essa festa de cuecas é deprimente, desculpa falar._ afirmou Michel

Os três olharam para o professor que não se pronunciou porque estava apagado no sofá. Eles concluíram que aquele deveria ser o único momento em que ele se sentia verdadeiramente relaxado para descansar e por isso não o incomodavam.

_ Esse não é o propósito dessas reuniões e mesmo se fosse, garanto a vocês que ainda arrumaria um jeito de terminar a noite na seca como sempre.

_ Você precisa sair mais comigo, vou te levar nuns lugares bacanas.

_ Eu não tenho o que reclamar em relação a mulheres. Eu amo a minha esposa, mas ela não me deixa fazer as coisas que eu realmente gosto. Fui cedendo tanto sem perceber que hoje sinto que me tornei uma sombra de quem eu realmente era.

_ Porque você não se divorcia dela?

_ Sei lá, acho que é porque não vou achar ninguém melhor.

_ Quem disse?

_ Sei lá, eu demorei tanto a achar alguém que me suporte. Eu sei que sou uma pessoa difícil. Eu a amo por suportar a minha convivência.

_ Cara, isso é muito triste.

Os três ficaram em silêncio por bastante tempo. O veterinário quebrou o silêncio:

_ Olha, ela não é uma pessoa ruim.

_ Ninguém disse isso.

_ Mas eu sinto que dei essa impressão.

_ Gente, vamos mudar de assunto? _ disse Alexandre claramente incomodado com toda aquela situação. _ Ele desabafou e agora vamos seguir em frente.

_ Esse é exatamente o problema. _ disse Michel. _ todo mundo vem aqui, chora as pitangas e segue em frente. A gente precisa fazer alguma coisa a respeito. Não podemos ficar só nessa terapia paliativa para superar a existência. A gente precisa viver! Viver de verdade! Fazer isso uma vez só não vai matar ninguém. A gente precisa dessa catarse. Vocês são praticamente a minha família. Pegar mulher é bom, mas é bastante solitário também, podem acreditar. Acho que por isso me interessei tanto nessa declaração do Cassiano. Desculpe se fui invasivo.

_ Não, eu gostei de comentar sobre isso. Não se preocupe. Fui eu que comecei, afinal de contas.

_Acho que a gente precisa arrumar uma maneira de estender esse nosso contato. Estamos precisando de uma espécie de intensivão, onde todos tenham a oportunidade de se ajudar para sair desse marasmo emocional em que estamos. _ refletiu Alexandre.

_ O que você está propondo? Uma viagem? Para onde a gente iria? _ perguntou Michel.

_ Uma viagem seria legal. A gente podia acampar, pescar… _ disse Cassiano.

_ Eu gosto de pescar, mas a gente precisa incrementar a nossa sociabilidade. Não a minha, mas a de vocês. _ rebateu o DJ

_ Vamos pesquisar um festival em uma cidade aqui perto. Alguns dias com muita festa e bebidas. A gente está precisando de algo assim, não é?

_ Agora você está pegando o espírito da coisa! Vamos sair dessa zona de conforto, pessoal!


Resolveram então ir para a Festa da Cachaça em Abreus. Cada um fez a sua própria programação, conseguindo folgas no trabalho e fazendo reservas na pousada da cidade. Partiram no Gol vermelho de Alexandre que montou até uma playlist para animar o pessoal. A viagem durou algumas horas e eles tiveram bastante tempo para conversar no carro. Michel aproveitou para dar umas dicas de pegação para o amigo bancário:

_ Cara, posso te falar uma coisa? Por favor não se ofenda.

_ Pode falar, você é irmão.

_ É sobre a sua abordagem com a mulherada.

_ O que tem ela?

_ Você tem que ser mais desapegado. Elas sentem a sua carência de longe, não curtem.

_ Eu sou romântico, qual o problema?

_ Romântico não, é desesperado mesmo.

_ Isso realmente é um choque para mim.

_ Me desculpe por ser tão direto. Já devia ter conversado isso contigo antes.

_ Tranquilo, sem problemas.

Alexandre aproveitou para mudar de assunto e perguntou a Cassiano:

_ E você, quais os planos para a nossa viagem?

_ Não sei, vou aproveitar esse tempo longe da patroa para curtir, pensar na vida, sei lá. Estou indo mais pela farra mesmo, sem expectativas.

Astolfo dormia um sono pesado com a cabeça apoiada na janela. Era o único que dispensava quaisquer explicações sobre eventuais motivações para aquela viagem.


Depois de um tempo acabaram chegando ao seu destino. Se instalaram na Pousada e saíram para ver as atrações da cidade. O professor estava desperto, como se tivesse recobrado as suas energias, ansioso para retomar o tempo perdido. A típica cidade do interior mineiro ganhou o coração dos turistas sem fazer esforço. Os estandes estavam começando a ser montados, assim como o palco onde aconteceria o show da banda Pedra Letícia à noite. O olhar curioso dos pelicanos chamou a atenção de uma moça que obviamente percebeu que eram de fora e os convidou para tomar um café em sua padaria. Mia era o seu nome. Alexandre ficou encantado pela moça e já estava se adiantando quando foi interrompido pelo DJ que sussurrou no seu ouvido:

_ Pega leve. Lembra do que eu te falei. Sem ansiedade.

O bancário respirou fundo e manteve a conversa despreocupado. Astolfo estava incrivelmente animado e já foi perguntando sobre as melhores cachaças para beber na região. A moça respondeu que havia uma marca famosa chamada Brisa, nas opções Caipibrisa e Maracujá. O professor quis logo começar a beber, enquanto os outros três resolveram deixar para mais tarde. Ficaram sabendo de uma cachoeira muito bonita ali perto e foram tomar um banho para relaxar da viagem. Cassiano respirou fundo e sentiu um estranho alívio percorrendo por todo o seu corpo que fez com que ele gargalhasse alto sem motivo aparente.

_ Deveríamos ter feito isso há mais tempo. _ disse o veterinário com um sorriso de satisfação estampado em seu rosto.

_ É curioso como ficamos presos aos nossos hábitos a ponto de não percebermos a gaiola invisível que cresce ao redor da gente.

_ Nem bebeu e já está filosofando, Alex? _ perguntou Michel em tom de brincadeira.

_ Está tudo indo tão bem que estou prevendo que em algum momento essa viagem vai dar merda. _profetizou Cassiano.

_ Porque você diz isso?

_ Está tudo calmo demais. Parece filme de terror barato.

_ Você é neurótico. Acho que você sente falta do stress.

_ Eu estou estranhamente relaxado, para dizer a verdade. Acho que nunca me senti assim na minha vida.


_ O céu está azul, a pousada é ótima, só aproveita. Não pense no que virá. Só aproveite o momento.

O veterinário respirou fundo, olhou a água cristalina e só absorveu o instante. Depois de retornarem e almoçarem é que deram conta do sumiço do professor. Todos pensaram no que foi profetizado anteriormente, mas ninguém disse nada. Provavelmente estava bêbado e caído em algum lugar.

Quando escureceu eles começaram a beber. A multidão se formou na praça e a festa começou. Cassiano foi atrás do professor e o DJ se perdeu despreocupado no meio da galera. Alexandre completamente sem jeito resolver se sentar em um dos bancos da praça que estavam vazios. Nem percebeu quando Mia se sentou ao seu lado, mas sentiu uma descarga de ternura quando ela encostou a cabeça em seu ombro, já um pouco embriagada. Ela disse que por algum motivo se sentia bem ao lado dele. Uma espécie de calma reconfortante emanava do banqueiro, segundo ela. Ele resolveu seguir o que foi conversado na cachoeira e só curtiu o momento, sentindo a adorável fragrância floral que brotava dela. Fechou os olhos e colocou os braços ao redor da moça. De repente um beijo no rosto, depois na boca. E assim ficaram naturalmente juntinhos até o fim do Festival, sem forçar a barra, espontaneamente. Depois disso trocaram contatos e continuaram se falando, mesmo depois que eles foram embora. Não havia o compromisso de algo mais sério, ele já estava feliz de poder contar com o carinho da moça, mesmo que fosse à distância.


O veterinário achou Astolfo na cadeia por perturbação da ordem. O rapaz festejou de forma tão intensa que tirou a roupa e ficou muito louco com o excesso de cachaça. Depois de paga a fiança foi levado a um posto de saúde onde tomou glicose. De certa forma cada um acabou ganhando exatamente o que pretendia daquela viagem, que foi a primeira de muitas outras.

O olho de Padax

  A ilha de Thalassa ficava no mar de Aquilonis, localizado entre a parte continental chamada Agamemnonia ao norte e Elíthera ao sul. A les...