A ilha de Thalassa ficava no mar de Aquilonis, localizado entre a parte continental chamada Agamemnonia ao norte e Elíthera ao sul. A leste ficava o oceano Archaia e a oeste Anótatos, duas porções vastas de água salgada tanto inexplorada quanto recheada de lendas e mistérios.
O navegador que tinha conseguido alcançar a maior distância de que se tem notícia foi o audacioso Petryos com sua embarcação chamada Myrtanos, um valente desbravador que tinha chegado a lugares onde muitas pessoas nunca sonharam em ir. Seu filho Yanos não herdou a mesma disposição, se contentando em gerenciar uma taverna na ilha isolada em questão. Arton, seu amigo que morava no farol local, não se conformava com isso:
_ Não entendo. Simplesmente não entendo.
_ Sim, eu sei. Você comenta isso todo dia. Está ficando chato, a propósito.
_ Mas cara, seu pai foi uma pessoa lendária, um nome que vem ressoando há décadas…você sinceramente não está cansado desse tédio?
— O tédio é seguro, não o despreze, meu caro.
_ A gente não sai dessa ilha nem para comprar vinhos no continente. Você não tem nem um pouco de curiosidade em saber o que mais existe ao nosso redor?
_ Eu até penso nisso às vezes, mas não compensa o risco.
Essas conversas seguiam recorrentes, até o dia em que o faroleiro avistou certa noite um estranho ponto luminoso caindo do céu e crescendo à medida em que se aproximava do solo. Arton correu depressa até o local da queda e encontrou uma bela moça no fundo de uma cratera, com pés de gaivota. Ele a pegou em seus braços e a carregou até o farol, onde cuidou até que ela retomasse a sua consciência. Quando ela finalmente acordou, estava bem confusa e demorou a se lembrar do que tinha realmente acontecido. Sabia que seu nome era Strix e era uma bruxa. Tudo o que o faroleiro sabia era que ela estava caída ao lado de uma estranha pedra lilás que brilhava de uma forma bastante curiosa, pulsando como um coração. Quando ele mencionou a gema, de repente ela se recordou de tudo. Perguntou desesperada:
_ Por favor me diga aonde está essa joia!
_ Eu guardei no meu armário, porque?
_ É o olho de Padax. É um artefato extremamente perigoso. Eu roubei do Conclave porque a líder delas, a bruxa Calix, a deseja para comandar todos os monstros marinhos e dessa forma obter uma enorme vantagem sobre o comércio intercontinental. Esse tipo de situação pode desencadear guerras e mortes intermináveis.
_ E como a gente se livra dessa pedra?
_ A gente tem que atirar ela no abismo interminável de Taruxos, localizado em uma ilha no extremo leste do oceano de Archaia.
_ Isso é complicado. Não temos tripulação nem barco para fazer isso.
_ Eu não consigo fazer isso sozinha, é muito longe para seguir voando em alto-mar por tanto tempo. Sem falar que as bruxas do Conclave logo me alcançarão, então estamos com pouco tempo.
Era a desculpa perfeita para Arton sair daquele marasmo a que estava confinado, então obviamente ficou empolgadíssimo com essa oportunidade. A primeira coisa a fazer seria procurar um barco para essa missão. O único disponível ficava no estaleiro do velho Kartopolos, um navegador aposentado que tinha perdido sua tripulação em um naufrágio, após confrontarem uma serpente marinha gigantesca. Levaram algumas horas para chegar lá, pois o local ficava no outro lado da ilha.
Chegando lá, demoraram um bom tempo para convencer o velho a construir um barco resistente o bastante para tal viagem e ele só aceitou com a condição de ser o timoneiro da embarcação. Em seguida viria o problema mais difícil, que seria arranjar voluntários para essa empreitada. No caminho para a taverna, o faroleiro não conseguiu evitar de perguntar sobre algo que o estava incomodando já há algum tempo:
_ Me desculpe, mas há algo que preciso lhe perguntar, é apenas uma curiosidade, não se ofenda…
_ É sobre os meus pés, não é?
_ Pois é.._ respondeu ele meio sem jeito.
_ Faz parte da maldição, por afastar a pedra do seu altar no Conclave. Agora preciso ir até o fim, se quiser voltar a ter pés normais de novo._ respondeu ela rindo.
Depois de muitas e muitas horas de conversa, Yanos finalmente foi convencido de que não havia outra opção: teria que se voluntariar naquela missão suicida pois não haviam muitas pessoas que pudessem ir no seu lugar. Na verdade praticamente nenhuma que já não estivesse incluída nessa loucura.
_ Qual será o nome da nossa embarcação? Perguntou Arton que não conseguia disfarçar a sua empolgação.
_ Sinceramente isso não me interessa.
_ Ok, então escolho Aion, que representa eternidade e imortalidade.
_ Por mim tá ótimo.
_ Precisamos de guerreiros… e mapas.
_ Tenho muitas anotações do meu pai, acho que vai ajudar. Quanto a guerreiros, a única alternativa é levar o Karyo.
_ Mas ele é maluco, completamente psicótico. Toda vez que sai da cadeia arruma briga. Instável demais.
_ Exatamente por isso ele não vai fazer falta aqui. Precisamos ser pragmáticos. Além disso, ele não é difícil de lidar. É só um pouco impulsivo.
_ A gente vai ter que treinar lutas também, até o barco ficar pronto.
E assim foram passando os dias, confeccionando armas e treinando combate com a pessoa mais surtada e disponível naquele momento, embora soubessem que muitos dos desafios que eles eventualmente enfrentariam eram completamente imprevisíveis. Arton treinou o jovem aprendiz Oryxo para operar o farol e Yanos deixou sua garçonete Vanosha encarregada de gerenciar o seu estabelecimento.
Quando o barco finalmente ficou pronto eles coletaram todos os mantimentos que podiam e traçaram uma rota no mapa até o seu objetivo.
No dia da partida, o taverneiro ainda estava bastante apreensivo e contrariado, pois aquele era o seu pior pesadelo. Zarparam em uma manhã ensolarada em direção a um infinito atraente e perigoso na mesma proporção. A nau desfilava com elegância e sutileza pela imensidão azul, valsando com as ondas numa sincronia ímpar. Kartopolos ficou tão emocionado que quase chorou embalado em sua nostalgia particular. Arton subia empolgado pelo mastro principal com a leveza de um símio se equilibrando nos galhos de uma árvore. Era como se ele tivesse treinado a sua vida inteira para aquela função. Seu lugar favorito no barco era o cesto da gávea, o ponto mais alto de onde ele avistava toda a magnitude da vastidão que os cercava.
Os primeiros dias seguiram tranquilos, onde a tripulação pescava e aproveitava para se conhecer melhor. Tudo era novidade: os pássaros pescando, os golfinhos e baleias acompanhando a embarcação como se bailassem ao seu redor. À noite bebiam vinho e cantavam, na tentativa de espantar o medo da iminente ameaça que provavelmente os alcançaria.
Foi então que avistaram o primeiro monstro marinho. Tinha o tronco semelhante ao de uma baleia, revestido por uma estranha carapaça de corais e algas. Suas quatro pernas eram escamadas com barbatanas nas extremidades, que lhe permitiam nadar com bastante rapidez. A boca era enorme e dentada como a de um tubarão. Aproximou-se do barco com rapidez e ferocidade, enxergando o mesmo como uma ameaça. Yanos estava petrificado de medo cada vez que a criatura chocava seu corpo contra a embarcação. Virou-se para a feiticeira e perguntou:
_ Você não disse que essa pedra controlava monstros marinhos?
_ Sim, mas ela precisa estar presa a um determinado cetro, após um ritual com os alinhamentos dos astros e etc. Sozinha ela não faz nada.
_ Podia ter explicado isso antes não?
_ E faria diferença?
Karyo estava determinado a pular no monstro e lhe acertar uma espada no olho, mas foi impedido por Arton, que teve a idéia de repelir a ameaça usando algum tipo de líquido fedorento para repelir o mesmo. Infelizmente não tinham nada a disposição, mas Strix aproveitou essa ideia para usar seu feitiço e deixar a água turva e pegajosa ao redor do Aion, levando a criatura a mudar de idéia e seguir em frente.
Quando estavam começando a comemorar perceberam que uma tempestade estava se formando. Recolheram as velas e esperaram pelo pior. As ondas subiam em alturas absurdas, chacoalhando o barco num ritmo assustador. Um raio afetou o mastro principal, levando a tripulação a repensar a sua estratégia. Quando a chuva cessou, ficaram por um bom tempo à deriva até finalmente avistarem uma ilha de tamanho mediano, que continha uma pequena floresta e um enorme rochedo, rodeados de praia por todos os lados.
Yanos e Arton ficaram encarregados de alcançar aquela porção de terra e conseguir a madeira necessária para consertar as avarias do Aion. Enquanto caminhavam pela floresta perceberam pegadas gigantescas no chão. Ficaram com medo, mas precisavam da lenha. Começaram a cortar rapidamente as árvores quando de repente ouviram algo se aproximando lentamente. Seus passos faziam muito barulho e seu corpo gigantesco ia derrubando tudo por onde ele passava. Pensaram em correr, mas não faria muita diferença, então resolveram se esconder. Se deitaram no chão e foram se arrastando sem rumo até encontrarem uma fenda no pedregulho gigantesco. Felizmente conseguiram entrar, mas, ainda assim, estavam indefesos.
De longe avistaram um gigante ciclope que percebeu a presença de estranhos em seu território e estava tentando localizá-los. A tensão aumentava a cada segundo, pois ele farejava sem parar e não demonstrava sinais de que iria desistir enquanto não encontrasse os intrusos. De repente o inevitável aconteceu: a criatura os avistou e avançou rapidamente em direção ao grupo. As respirações da dupla ficaram cada vez mais ofegantes e eles acharam que tinham encontrado o seu fim quando subitamente um monstro voador semelhante a um pterodáctilo deu um rasante e atacou o gigante. Enquanto os dois se atracavam, a dupla de aventureiros pegou as madeiras que precisavam e correu para a praia, sem olhar para trás. Começaram a carregar as toras cortadas dentro da pequena balsa que tinham utilizado para chegar na ilha, pois o Aion estava ancorado a alguns metros dali. Depois começaram a remar com pressa, enquanto o ciclope terminava de estrangular o monstro alado.
Quando estavam quase alcançando o barco foram novamente avistados pelo gigante, que pegou uma pedra enorme e foi correndo em direção à praia, para logo em seguida atirar o grande projétil.
A dupla no barquinho ficou congelada de medo, prendendo a respiração enquanto uma sombra enorme lentamente os encobria. De repente a pedra parou no ar, por efeito da magia telecinética de Strix que a atirou para o lado no oceano, fazendo uma onda enorme que quase virou a embarcação do grupo.
Naquela noite eles tiveram problemas para dormir, pois estavam bastante impactados pelos eventos recentes. Beberam vinho e adormeceram tão pesado que não perceberam o que aconteceu com o Aion enquanto eles dormiam. Quando acordaram eles perceberam que o barco tinha sido suspenso no ar pelo casco de uma tartaruga gigantesca que havia emergido por debaixo deles. Completamente indefesos e surpresos, ainda estavam tentando compreender o que estava acontecendo quando um portal se abriu na cabeça do réptil e três bruxas saíram dele. Strix logo as reconheceu:
_ Agnes, Sidonia e Berga. Finalmente me encontraram.
O trio foi planando lentamente até chegarem à proa da embarcação. Pousaram lentamente enquanto a tripulação do Aion as observava com espanto e medo. Depois de um breve silêncio, a lider do trio tomou a palavra:
_ Bem, preciso admitir que vocês chegaram mais longe do que eu tinha imaginado. Mas eu não quero me prolongar por mais tempo que o necessário. Só quero a pedra e nós iremos embora.
_ Se eu te entregar a gema, nosso esforço terá sido completamente em vão. Ninguém merece nem pode possuir o poder que emana dessa relíquia._ retrucou Strix._ Porque você acha que eu estou fugindo com ela?
_ Porque você é uma traidora que pensa ser mais merecedora do que as outras!_ Respondeu Berga, a bruxa à direita da líder Agnes. Esse artefato pertence ao Conclave e a sua punição até que foi leve por você ter nos roubado!_ completou ela referindo-se aos pés de Strix.
_ Porque estamos nos explicando tanto? Você sabe que errou!_ Sidonia finalmente acabou dizendo alguma coisa. _ Vamos! Entrega logo a pedra ou faremos uma carnificina aqui!
Strix logo ficou na sua posição de combate e criou um campo de força em volta dos outros tripulantes, que estavam completamente confusos e se sentindo bastante indefesos. Yanos sentiu que seus dias de aventureiro tinham finalmente terminado quando Arton teve uma idéia. Pegou o pequeno espelho que ficava em seu bolso e refletiu a luz do sol no rosto das bruxas. Foi tão imprevisível e inusitado que as deixou vulneráveis por um breve momento, permitindo que a feiticeira com pés de ave as aprisionasse temporariamente numa pequena esfera de vidro, aproximadamente do tamanho de uma bola de cristal usada pelas ciganas. Depois disso a tartaruga lentamente submergiu e seguiu seu rumo, como se nada tivesse acontecido.
_ Infelizmente vocês terão que continuar sem mim._ disse a bruxa._ preciso levar esse trio o mais longe possível, enquanto ainda tenho tempo, pois essa redoma em breve irá se quebrar. Vou deixar a pedra com vocês dentro de uma urna, para que vocês não sejam afetados. Não quero saber para onde vocês vão, só quero que levem o mais longe possível.
Usando sua magia ela pegou um pequeno baú que estava ali perto, criou um pequeno invólucro ao redor do mesmo e o entregou nas mãos de Karyo.
_Para chegar no tal abismo que você comentou, não tem um mapa ou algo do gênero?_ Perguntou Yanos.
_ Não dá tempo para explicar. Adeus!
Depois dessas últimas palavras ela flutuou até o portal, que se fechou atrás dela.
_ Assim como ela veio, se foi. Misteriosa e sedutora. Parece até um sonho gostoso que terminou de repente…_ disse Arton com um tom de tristeza na voz.
_ Sonho gostoso? Tá mais para pesadelo. Você se esqueceu de que a gente quase morreu inúmeras vezes desde que essa loucura toda começou? Por mim a gente lança essa pedra no fundo de uma caverna qualquer e volta. Basta a gente esconder num lugar bem inóspito, longe o bastante para evitar qualquer tipo de problemas.
Assim todos concordaram e seguiram com o plano, continuaram navegando por mais uma semana sem parar até avistarem uma ilhota perdida no meio do oceano. Tinha apenas areia e algumas pedras. Era menor que o barco, mas funcionava como um esconderijo para a pedra, afinal, quem poderia adivinhar? Cavaram um buraco bem fundo e ali a deixaram. Certamente não era o ideal, mas no momento servia como a melhor alternativa possível.
_Agora é só voltar, finalmente essa loucura acabou!_ Disse Yanos respirando aliviado._ Agora é só seguir remando de volta e nunca mais repetir esse tipo de aventura!
_ Mas quem disse que precisa acabar? A gente quase morreu, é verdade, mas viu muita coisa legal que a gente nem imaginaria que existisse…
_ Isso é verdade._ concordou Karyo._ Ei Yanos, que tal a gente procurar o seu pai?
_ Não, nem começa!
_ Eu espero um dia reencontrar a Strix…
_ Vamos fazer votação para ver quem quer ir nessa nova missão!
_ Não, eu tenho a taverna para voltar!
_ Não vai demorar nada, você vai ver.
_ A gente pode ir ver se o tal do abismo existe!
Yanos sentou triste em um barril no convés, já prevendo que aquele seria apenas o início de várias aventuras e problemas que ele encontraria pela frente. Estava resignado, mas não estava com medo, porque embora não admitisse, nunca tinha se sentido tão vivo quanto desde que saíram de casa.